ALÉM DAS SANDÁLIAS

*Gen Marco Aurélio Vieira / Março 2023

ALÉM DAS SANDÁLIAS

“Tudo que provém dos partidos políticos - paixões declaradas, leilão de doutrinas, escolha ou exclusão de homens segundo suas opiniões – cedo fará corromper a corporação militar, cujo poder se afirma primeiro por sua virtude.”

Charles De Gaulle

 

Conta-se que na Grécia antiga, um pintor de nome Apeles costumava exibir suas obras à frente do ateliê e esconder-se para ouvir comentários de transeuntes. Passando pelo local, um sapateiro viu um daqueles quadros e observou que havia um “defeito” nas sandálias da figura pintada. Imediatamente Apeles tirou o quadro da exposição e o consertou. Na manhã seguinte, percebendo o sucesso de seu comentário e confiante na sua sugestão, o sapateiro resolveu criticar as pernas da pintura. Apeles saiu imediatamente de seu esconderijo e exclamou "Ne sutor ultra crepidam" – Não vá o sapateiro além das sandálias – ou não emita opinião sobre aquilo que não é da sua competência.

No Brasil de hoje, os políticos não têm se inibido de ir além de suas competências. Lula – em campanha – afirmou que “no seu governo as Forças Armadas serão aquilo que o Governo quiser que sejam” e que, se fosse eleito “iria ocupar as Forças Armadas com coisas mais dignas”. Ciro Gomes foi além, disse que o governo era uma “holding do crime, claramente protegida por autoridades brasileiras, inclusive das Forças Armadas”, e sugeriu que “os futuros presidentes deveriam influir no sistema de ensino e modificar os critérios de promoção dos militares”.

Já eleito, Lula declarou que “perdeu a confiança em parcela dos militares”, queixando-se da “politização das Forças Armadas”. Por outro lado, José Dirceu passou a defender “reestruturar o papel das Forças Armadas, enquanto José Genuíno propõe “refundar a estrutura militar”.

Os militares brasileiros expulsaram os holandeses da Colônia, negaram-se a atuar como Capitães do Mato na captura de escravos no Império, e fizeram a Proclamação da República, sem jamais impor um caudilho ao país.

No século passado, nossas Forças Armadas lutaram contra o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial e, desde os anos 40, têm se destacado em missões de paz pelo mundo. As atuações brasileiras no Haiti e na Operação Acolhida, de recepção aos refugiados da ditadura venezuelana, são consideradas atualmente modelos de operações de não guerra pela ONU. Em todo território nacional, nossa gente tem vivenciado a seriedade e a segurança transmitida pelos militares, seja no atendimento às populações ribeirinhas na Amazônia, na distribuição de água no sertão nordestino, ou nas operações de garantia da lei e da ordem (GLO).

Hoje, as imagens das aeronaves das Forças Armadas e dos hospitais de campanha na luta para amenizar a tragédia que se abateu sobre o povo Ianomami, ou nas chuvas do litoral Norte de S. Paulo, comprovam a necessidade dos soldados no cumprimento das missões de misericórdia, impossíveis para outras organizações.

Há que se reconhecer também sua postura estritamente profissional, depois da redemocratização do país, contrária inclusive ao seu histórico, que têm sido fator significativo para manutenção da paz e da evolução político-social da Nação.

E, ainda que persistam as justas e injustas críticas quanto a um maior protagonismo dos nossos militares nos últimos acontecimentos políticos do país, os brasileiros não podem deixar de se orgulhar de suas Forças Armadas, cujas competências e realizações são destaques no âmbito das forças militares do mundo todo.

Contudo, por ignorância, prepotência ou puro preconceito, os políticos brasileiros desconhecem os fundamentos da missão constitucional das nossas Forças Armadas, não demonstram a mínima preocupação com as atuais ameaças transnacionais, e continuam a se manifestar sobre assuntos militares valendo-se de clichês ultrapassados e mesquinhas narrativas ideológicas.

O próprio Presidente Lula não esconde seu preconceito contra o estamento militar, e quer nos fazer acreditar ser capaz de resolver conflitos bélicos tomando cerveja no botequim, numa presunçosa demonstração de “sabedoria estratégica”, que só atesta o quanto nossos representantes estão desconectados das demandas da geopolítica mundial. E agora no poder, eles estão constatando que as Forças Armadas são – realmente – um empecilho aos seus interesses partidários de ocasião.

Assim, decidiram tentar “ajustar” os centenários princípios e valores castrenses aos seus objetivos políticos imediatos, legislando sem qualquer fundamento consistente, no que intitulam de “proposta de emenda constitucional dos militares”.

Atenção! Alterar a destinação constitucional das Forças Armadas é questão que exige amplo debate sobre Segurança e Defesa pela sociedade, sendo imperativo, inclusive, que isso resulte de uma Constituinte. Essa proposta de emenda da constituição levada a toque de caixa hoje por leigos no Congresso é inoportuna, inconsequente, e não consegue esconder uma indisfarçável intenção de “vingancinha pós-eleição” de certos partidos pouco comprometidos com a democracia.       

Aos senhores políticos recomendo não ir além das sandálias dos combates à corrupção, ao clientelismo e ao nepotismo, defeitos – e correções - facilmente identificáveis, dentro de suas próprias alçadas. Alerto não serem oportunas as críticas à natureza ou às missões das Forças Armadas, bem definidas na Constituição Federal: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares [...] destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais [...] da lei e da ordem.”

Instituições de Estado não atendem às vontades políticas de ocasião, e nem existem para serem aquilo que os governantes de plantão bem entenderem. Propostas irresponsáveis de cunho ideológico, sem embasamento estratégico/militar, de quem sequer se inibe em explicitar sua ignorância quanto ao quadro geopolítico mundial, só fazem corromper as instituições militares e gerar instabilidade institucional.

Por Gen Marco Aurélio Vieira

* Foi Comandante da Brigada de Operações Especiais e Comandante da Brigada de Infantaria Paraquedista

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Ultima Hora Online e é de total responsabilidade de seus idealizadores. 

 

Por Gen Marco Aurélio Vieira em 22/02/2023

Comentários

  • Fico satisfeito General, em saber que pelo menos um componente do Alto Comando, não observa só as sandálias. Vê o papel da nossas FFAA de forma mais holística, entendendo de fato qual é a sua missão constitucional: Defender a Pátria, manter a instituições e GARANTIR A LEI E A ORDEM, leis e ordens essas, inclusive aquelas estabelecidas na Constituição Federal, que vêm sendo rasgadas à vista do povo brasileiro, nele incluídos os militares, por apenas meia dúzia de Senhores, que não nos representam, que ali foram colocados com interesses sabe-se lá quais foram, que por vezes nem mesmo ccompetencia têm para o cargo, e que hoje arvoram-se em ditadores na definição do que é certo e do que é errado, do que é justo e do que não é justo sem se incomodar com o respeito à LEI E À ORDEM vigentes e assim estabelecidas pelas vias democráticas legais. Me conforta, General, saber que ainda podemos contar com homens com a sua visão. Parabéns pelo texto.
    Jose Carlos Latini Moreira Moreira
    23/02/2023
  • Parabéns pelo artigo e por sua liderança e dedicação na defesa das FFAAS. Além das missões humanitárias e de paz, manter as instituições e garantir a lei e a ordem é fundamental para proteger os direitos e liberdades de todos e garantir a estabilidade e segurança da nação. Sua visão estratégica, habilidades de gestão e capacidade de tomar decisões difíceis sempre foram admiráveis. Rezo para que os atuais líderes da nação e particularmente os das FFAAs ainda vistam as sandálias corretas! Mais uma vez, meus sinceros elogios pelo artigo e por suas contribuições notáveis ao Exército Brasileiro.
    Gustavo Schneider
    23/02/2023
  • General, seu artigo é muito claro e preciso. Entretanto, continua na mesma linha que vem sendo adotada pelos militares da ativa: avisos que contém um toque de ameaça, mas sem qualquer efeito prático para a nação. Os recentes acontecimentos relacionados entre si, que se iniciaram com a \"descondenação\" de um futuro presidente, até a sua posse, e as investidas ignóbeis de políticos e outros líderes, citadas pelo senhor, questionando a respeitabilidade e competência das FAAs quanto ás suas atribuições constitucionais, CERTAMENTE deixaram os brasileiros profundamente reocupados (para dizer o mínimo). Eu cresci aprendendo a respeitar, admirar e defender os militares, e sempre manterei esta postura. Entretanto, a questão que se impõe é: o que as FAAs farão quanto à proposta de alterar suas funções constitucionais? exigirão participação de militares na discussão? ou continuarão publicando artigos avisando aos políticos, mas sem qualquer atitude firme e objetiva, que tranquilizem a Nação?
    LucianoF
    23/02/2023
Aguarde..