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Ao longo da história das religiões, por muitas vezes indivíduos, grupos e instituições criaram um discurso em que buscaram diferenciar o “nós” do “eles”. Isso ajudou a construir uma identidade onde o “nós” foi definido a partir de características tidas por positivas, diferentemente do “eles”, definido por características postas como depreciativas.
Com base nisso foram estabelecidos critérios de conduta e de modos de pensar que justificaram práticas de segregação social, de violência física e de dominação política.
Os teólogos do cristianismo primitivo, ainda na época do Império Romano, como Eusébio de Cesaréia e Teófilo de Antioquia, qualificaram as crenças politeístas como demoníacas, imorais e idólatras. Com o tempo os cultos pagãos foram proibidos e seus adeptos perseguidos.
Na Idade Média, populações judaicas e islâmicas foram discriminadas por terem uma “fé errada”, e os cristãos que tinham uma leitura sobre os ensinamentos bíblicos diferente do que estabelecia a ortodoxia católica foram condenados como hereges. Já na Idade Moderna, católicos e protestantes perseguiram uns aos outros como heréticos em conflitos que resultaram em muitas mortes.
E ambos queimaram diversas mulheres, acusando-as de bruxaria, por desconfiarem de seu comprometimento com a fé.
Mas se a Idade Moderna na Europa foi uma época que testemunhou um acirramento nos conflitos religiosos, ela igualmente viu florescer novas ideias.
De um lado o secularismo, base para uma autonomia das esferas do conhecimento da tutela religiosa. Com isso, foi possível ter um entendimento sobre o mundo e a sociedade não inerentemente religioso.
Por outro lado, vicejou a laicidade, que postulou o preceito político de que o Estado não deveria discriminar ninguém por sua crença religiosa, mas tratar todos de forma igual perante a lei, ao definir a opção religiosa como escolha individual
O cenário de difusão e valorização de ideias seculares e laicas trouxe, entre suas consequências, a possibilidade de que pessoas sem crenças religiosas, como as ateias, pudessem manifestar suas posições sem o perigo de serem perseguidas, presas e condenadas.
Do ponto de vista histórico, isso foi um grande avanço, uma vez que no Ocidente, por muitos séculos, o ateísmo foi sinônimo de imoralidade e perigo político. Ainda que preconceitos ao ateísmo persistam hoje, houve avanços se comparado a épocas passadas.
A luta pelos direitos dos ateus e outros grupos com visões religiosas distintas daquelas professadas pela maior parte da sociedade, foram ancoradas, a partir do século XIX, pela militância de associações de livre-pensamento, humanistas, seculares e ateias.
No Brasil, esse fenômeno ganhou evidência no início do século XXI, com a criação de associações e um ativismo jurídico e digital na luta contra o preconceito aos ateus e agnósticos.
Contudo, não é incomum encontrar no meio ateísta, especialmente na internet, o discurso em torno do “nós” e “eles”. De um lado, uma narrativa onde o ateu se apresenta como inerentemente racional, livre de dogmas e preconceitos, e cuja visão de mundo se fundamenta na ciência.
De outro lado, uma narrativa onde ele apresenta o religioso como inerentemente irracional, dogmático e preconceituoso, cuja visão de mundo se nutre de preceitos incoerentes. Esse tipo de discurso ajuda a fundamentar a posição de que a religião só possuiria traços nocivos e que, portanto, o melhor caminho seria que ela fosse extirpada da sociedade.
A narrativa do “nós” e “eles” é um processo cultural e social de construção identitária, e não um pressuposto baseado em uma essência pré-existente ao discurso.
A noção do ateu como imoral ou do religioso como irracional e preconceituoso, diz muito mais sobre quem profere tal narrativa, e os interesses que almeja a partir do estabelecimento de tais estereótipos, do que das pessoas que são identificadas como tal.
Não quero dizer que não existam pessoas que eventualmente se encaixem nestas definições. O perigo está em definir todo grupo nesses caracteres, criando uma identidade homogênea para eles.
Com o suporte desse discurso (“nós” e “eles”) eu já testemunhei no meio ateísta algumas vozes que defendem que a religião deve ser extinta por ser um atraso ao desenvolvimento humano.
Ora, nessa defesa está embutida uma censura ao direito de as pessoas professarem uma crença religiosa, o que depõe contra os princípios da laicidade. Mediante isso, como não imaginar a possibilidade de que no futuro, em uma hipotética sociedade de maioria ateia, os religiosos não sejam perseguidos por suas crenças, assim como ateus e ateias foram perseguidos no passado por grupos religiosos?
Fica a questão para se refletir.
O discurso do “nós” e “eles” é infrutífero e danoso para uma convivência social estabelecida com base em relações de tolerância e respeito mútuo ao direito de crença e não-crença, um dos pilares da laicidade.
Percebo que superar tal discurso ainda é um desafio para muitos religiosos e ateístas, mas imprescindível como suporte a ação de pessoas que almejem viver em uma sociedade regida por princípios democráticos, seculares e laicos.