Ateísmo e o discurso do “Nós” e “Eles”

Por Ricardo Oliveira da Silva Doutor em História pela UFRGS e docente do Curso de História da UFMS/CPNA

Ateísmo e o discurso do “Nós” e “Eles”

Ao longo da história das religiões, por muitas vezes indivíduos, grupos e instituições criaram um discurso em que buscaram diferenciar o “nós” do “eles”. Isso ajudou a construir uma identidade onde o “nós” foi definido a partir de características tidas por positivas, diferentemente do “eles”, definido por características postas como depreciativas.

Com base nisso foram estabelecidos critérios de conduta e de modos de pensar que justificaram práticas de segregação social, de violência física e de dominação política.

Os teólogos do cristianismo primitivo, ainda na época do Império Romano, como Eusébio de Cesaréia e Teófilo de Antioquia, qualificaram as crenças politeístas como demoníacas, imorais e idólatras. Com o tempo os cultos pagãos foram proibidos e seus adeptos perseguidos.

Na Idade Média, populações judaicas e islâmicas foram discriminadas por terem uma “fé errada”, e os cristãos que tinham uma leitura sobre os ensinamentos bíblicos diferente do que estabelecia a ortodoxia católica foram condenados como hereges. Já na Idade Moderna, católicos e protestantes perseguiram uns aos outros como heréticos em conflitos que resultaram em muitas mortes.

E ambos queimaram diversas mulheres, acusando-as de bruxaria, por desconfiarem de seu comprometimento com a fé.
Mas se a Idade Moderna na Europa foi uma época que testemunhou um acirramento nos conflitos religiosos, ela igualmente viu florescer novas ideias.

De um lado o secularismo, base para uma autonomia das esferas do conhecimento da tutela religiosa. Com isso, foi possível ter um entendimento sobre o mundo e a sociedade não inerentemente religioso.

Por outro lado, vicejou a laicidade, que postulou o preceito político de que o Estado não deveria discriminar ninguém por sua crença religiosa, mas tratar todos de forma igual perante a lei, ao definir a opção religiosa como escolha individual

O cenário de difusão e valorização de ideias seculares e laicas trouxe, entre suas consequências, a possibilidade de que pessoas sem crenças religiosas, como as ateias, pudessem manifestar suas posições sem o perigo de serem perseguidas, presas e condenadas.

Do ponto de vista histórico, isso foi um grande avanço, uma vez que no Ocidente, por muitos séculos, o ateísmo foi sinônimo de imoralidade e perigo político. Ainda que preconceitos ao ateísmo persistam hoje, houve avanços se comparado a épocas passadas.

A luta pelos direitos dos ateus e outros grupos com visões religiosas distintas daquelas professadas pela maior parte da sociedade, foram ancoradas, a partir do século XIX, pela militância de associações de livre-pensamento, humanistas, seculares e ateias.

No Brasil, esse fenômeno ganhou evidência no início do século XXI, com a criação de associações e um ativismo jurídico e digital na luta contra o preconceito aos ateus e agnósticos.

Contudo, não é incomum encontrar no meio ateísta, especialmente na internet, o discurso em torno do “nós” e “eles”. De um lado, uma narrativa onde o ateu se apresenta como inerentemente racional, livre de dogmas e preconceitos, e cuja visão de mundo se fundamenta na ciência.

De outro lado, uma narrativa onde ele apresenta o religioso como inerentemente irracional, dogmático e preconceituoso, cuja visão de mundo se nutre de preceitos incoerentes. Esse tipo de discurso ajuda a fundamentar a posição de que a religião só possuiria traços nocivos e que, portanto, o melhor caminho seria que ela fosse extirpada da sociedade.

A narrativa do “nós” e “eles” é um processo cultural e social de construção identitária, e não um pressuposto baseado em uma essência pré-existente ao discurso.

A noção do ateu como imoral ou do religioso como irracional e preconceituoso, diz muito mais sobre quem profere tal narrativa, e os interesses que almeja a partir do estabelecimento de tais estereótipos, do que das pessoas que são identificadas como tal.

Não quero dizer que não existam pessoas que eventualmente se encaixem nestas definições. O perigo está em definir todo grupo nesses caracteres, criando uma identidade homogênea para eles.
Com o suporte desse discurso (“nós” e “eles”) eu já testemunhei no meio ateísta algumas vozes que defendem que a religião deve ser extinta por ser um atraso ao desenvolvimento humano.

Ora, nessa defesa está embutida uma censura ao direito de as pessoas professarem uma crença religiosa, o que depõe contra os princípios da laicidade. Mediante isso, como não imaginar a possibilidade de que no futuro, em uma hipotética sociedade de maioria ateia, os religiosos não sejam perseguidos por suas crenças, assim como ateus e ateias foram perseguidos no passado por grupos religiosos?

Fica a questão para se refletir.
O discurso do “nós” e “eles” é infrutífero e danoso para uma convivência social estabelecida com base em relações de tolerância e respeito mútuo ao direito de crença e não-crença, um dos pilares da laicidade.

Percebo que superar tal discurso ainda é um desafio para muitos religiosos e ateístas, mas imprescindível como suporte a ação de pessoas que almejem viver em uma sociedade regida por princípios democráticos, seculares e laicos.

Por Jornal da República em 23/10/2021

Comentários

  • Excelente texto, esse tema precisa muito ser discutido nos grupos ateístas, uma vez que muitos ateus se colocam numa posição de superioridade em relação aos religiosos por se caracterizarem como mais racionais. A razão pura não é e nunca foi solução para resolver os problemas da humanidade. Não somos isto ou aquilo, somos um misto de razão, emoção, sentimentos e desejos que nos impulsionam em busca de uma vida que faça sentido. E cada indivíduo é livre pra fazer suas escolhas. Se eu quero e posso escolher ser ateia, não posso negar o direito do outro de buscar religiosidade.
    Glorinha Silva
    24/10/2021
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