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No dia 17 de março, um juiz de Ribeirão Preto (SP) ordenou a soltura de um comerciante que havia sido preso supostamente em flagrante pelos crimes de infração de medida sanitária preventiva, incitação ao crime e desobediência à ordem legal de funcionário público. O juiz considerou a prisão “manifestamente ilegal”.
A conduta do comerciante que acarretou sua prisão consistiu em manter seu estabelecimento aberto, em desobediência à “determinação do Governo Estadual”, que ordenou o fechamento do comércio na chamada “Fase Emergencial” da pandemia, e ter incitado outros comerciantes a fazerem o mesmo.
Na decisão, corretamente, o magistrado ponderou que o livre exercício do trabalho e a livre locomoção no território nacional são alguns dos direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição Federal (art. 5º, incisos XIII e XV) e que só podem sofrer restrição com a decretação dos estados de Defesa ou Sítio. Fora dessas hipóteses, nem mesmo a lei poderia impor tais restrições, pois seria inconstitucional. Que dizer então de decretos de governadores e prefeitos, que se olvidam de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Desnecessário dizer que se um decreto é ilegal, seu descumprimento pelos cidadãos não caracteriza crime. Assim, se a medida sanitária supostamente preventiva da propagação da doença viola o texto constitucional, seu descumprimento não constitui ilícito penal. O cidadão que conclama seus pares a não acatá-la não os está incitando a crime algum. Muito menos se poderá falar em crime de desobediência à ordem legal de funcionário público, já que o decreto, repita-se, legal não é.
Em especial, com relação a prisões por descumprimento de “toque de recolher”, a ilegalidade é patente. Como tem lembrado o procurador de Justiça Marcelo Rocha Monteiro, em seus perfis em redes sociais: “O único dispositivo legal que prevê, em caráter excepcionalíssimo, a obrigação das pessoas permanecerem ‘em localidade determinada’ é o inciso I do artigo 139 da CF, exatamente o artigo que estabelece as medidas que podem ser tomadas se for decretado o Estado de Sítio (apenas pelo presidente da República, e somente se o Congresso Nacional autorizar).
Há inclusive quem entenda que o toque de recolher, ou seja, o recolhimento domiciliar, não seria admissível nem mesmo no Estado de Sítio – a ‘obrigação de permanência em localidade determinada’ não poderia significar o confinamento no reduzido espaço da residência, e sim a obrigação de não ultrapassar os limites de uma rua, ou quarteirão, ou bairro etc.
Uma coisa é certa: sem estado de sítio, é inconstitucional a decretação de toque de recolher”.
Aliás, a secular OAB, histórica e aguerrida nas lutas pelas garantias individuais, notadamente no tocante às liberdades, poderia estar mais atenta a esses abusos autoritários, sem falar nas Defensoria Públicas, legitimadas em seu DNA a proteger desvalidos e hipossuficientes, clientela, ao que parece, mais sujeita às consequências dessa insana e ilegal caçada.
O enfrentamento da pandemia não se faz com constrangimento ilegal ao livre exercício do trabalho, menos ainda à liberdade de ir e vir. É preciso que sejam respeitadas as liberdades individuais em geral. Elas não podem ser suspensas, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, porque esta ou aquela autoridade assim considera adequado. Cada prefeito, governador, juiz ou promotor pode achar o que quiser, mas o que nos vincula não é a opinião pessoal; o que nos vincula é tão somente o texto da lei. Essa é a diferença entre rule of law e rule of people. Lutamos pelo primeiro, rejeitamos o segundo.
Queremos destruir o vírus, não o Estado de Direito.
Foto: Reprodução/Redes Sociais.
Marcelo Buhatem é Presidente da Associação Nacional dos Desembargadores (Andes).
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