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“... deveis saber tanto quanto nós que o justo, nas discussões entre os homens, só prevalece quando os interesses de ambos os lados são compatíveis, e que os fortes exercem o poder e os fracos se submetem”.
O trecho acima é parte da resposta ateniense do chamado diálogo meliano, transcrito do livro de Tucídides sobre a guerra do Peloponeso, travada entre Esparta e Atenas, no Século V aC.
É um texto clássico do realismo político, teoria que prioriza as ações pragmáticas nas relações políticas. O diálogo ocorre quando Atenas ameaça atacar a ilha de Melos (ou Milo, a mesma da Vênus), uma colônia de Esparta.
Os mélios, baseando-se em argumentos lógicos, propõem a neutralidade da ilha, enquanto os atenienses, cientes de sua superioridade, tentam impor uma rendição incondicional. Melos argumenta que render-se não fazia sentido, porque lutando ao menos haveria uma chance de manter a liberdade, enquanto a rendição era a certeza da escravidão.
Em um último apelo à razão Melos suplica: “Então vós não consentiríeis em deixar-nos tranquilos e em sermos amigos em vez de inimigos, sem nos aliarmos a qualquer dos lados?” A resposta dos atenienses mostrou todo o pragmatismo de sua prepotência:
“Não, pois vossa hostilidade não nos prejudicaria tanto quanto vossa amizade; com efeito, aos olhos de nossos súditos esta seria uma prova de nossa fraqueza, enquanto o vosso ódio é uma demonstração de nossa força”.
Melos foi então impiedosamente atacada pelos atenienses: todos os homens adultos foram executados, as mulheres e crianças vendidas como escravos e colonos atenienses ocuparam a cidade.
Desde os tempos imemoriais, os mais fracos e os diferentes têm suas razões e sua humanidade negadas, o que em tese aparentemente tem justificado a sua exploração ou extermínio, sem maiores contemplações.
Historicamente, a razão em si não tem servido de base para a moral, e não se observam grandes comoções quando acontece a violência contra povos ou nações que não se enquadram na lógica dos interesses das grandes potências econômicas e militares.
Assim, os Hebreus foram escravizados pelos Egípcios, César submeteu os Gauleses, a Espanha exterminou Incas e Astecas, e Hitler ocupou os Sudetos, diante dos dirigentes mundiais omissos, e de um Chamberlain iludido pelas promessas de paz nazistas. Assim foi a gênese dos países europeus contemporâneos: quase nunca democrática, e praticamente forjada pela imposição da força.
Hoje, assistimos a reprise macabra da encenação do sutil diálogo do mais forte.
De um lado a Rússia, senhora de poder bem superior e patentes argumentos de suas intenções em força, e do outro a Ucrânia, dotada de parcos meios militares para sua defesa, e gritando aos quatro ventos sua flagrante fragilidade.
Putin é um dos atuais chefes de estado de maior perspicácia geopolítica do planeta. Com iniciativas estratégicas oportunas, e uma teatral postura tirânica, ele vem colocando a Rússia sempre um passo à frente no tabuleiro político internacional, acuando seguidas vezes a Europa e os EUA para o canto dos movimentos defensivos e das reações improvisadas.
E sem dúvida, ele se preparou para essa guerra absurda contra a Ucrânia, aumentando seu poderio bélico, estocando reservas estratégicas, planejando a manobra das tropas, prevendo as possíveis reações da opinião pública, dentro e fora da Rússia.
Entretanto, o mundo globalizado tornou a guerra um evento “conectado”, e talvez Putin tenha subestimado algumas das novas intervenientes no equilíbrio de poder das nações.
Até recentemente esse equilíbrio estava calcado em grande parte simplesmente no poderio militar. Hoje, trata-se de uma combinação de poder econômico e militar, aliado à superioridade no espectro digital e a uma elevada capacidade de comunicação. E surgiu uma nova arma no campo de batalha, a chamada geoeconomia, capaz de promover a projeção regional ou global de poder através de intervenções no sistema financeiro mundial, da regulação do comércio internacional e da imposição de sanções econômicas.
Os conflitos passaram a envolver ainda o domínio das narrativas nas redes sociais, a capacidade de desencadear ciberataques de oportunidade, e até a compra do apoio estrangeiro indireto, para a conquista dos objetivos geopolíticos.
Agora, a tática da terra arrasada adotada pelo exército russo contra a Ucrânia – e seus incalculáveis danos colaterais – vão se contrapor ao bombardeio cirúrgico dos “mísseis geoeconômicos” lançados sobre a Rússia, por outras nações e mesmo por empresas privadas do mundo todo. Embargos, boicotes, suspensão das operações em território russo, desabastecimento, isolamento internacional, hostilidades previstas mas talvez mal dimensionadas por Putin, vão afetar duramente a desavisada população russa, de forma surda, inexorável e com capacidade de estragos no longo prazo até superiores aos das ações militares clássicas. Sim, ainda permanece válida a máxima da realpolitk dos gregos:
“Os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem”. Mas, no mundo conectado o diálogo do mais forte envolve múltiplos interlocutores, oprimidos e opressores não têm nacionalidade, e o poder não está mais só nas armas.
General de Divisão
Foi Comandante da Brigada de Operações Especiais e da Brigada de Infantaria Pára-quedista
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