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Não é novidade que nossa legislação, de um modo geral, possui texto de péssima redação, sem contar as contradições e incoerências, o que dificulta em muito uma interpretação literal e lógica do seu real significado, causando, muitas vezes, confusão na sua aplicação e entendimento, fruto de uma péssima qualidade legislativa ou, quiçá, proposital, vez que diante da ambiguidade a interpretação acerca da sua aplicação fica a cargo do interessado e, em último caso, da Justiça, podendo essa resposta, sem que muitos tenham consciência, alcançar o real objetivo do autor do projeto.
O cenário não é diferente na Justiça Eleitoral, onde nos deparamos com diversas disposições confusas, sem sentido e, por diversas vezes, conflitantes com outras normas, decorrência das inúmeras reformas políticas e eleitorais, que transforam a legislação em verdadeira colcha de retalhos, podendo-se citar como exemplos a controvérsia acerca do uso de carro de som nas campanhas eleitorais, a questão da mudança de partido na janela partidária, a autorização para mudança de partidos no caso da fusão partidária e, mais recente, a questão do cálculo das sobras para eleição proporcional.
No presente texto, vamos avaliar algumas situações, começando pela questão da janela partidária, esta que se encerra na próxima semana, cujo texto causa confusão nos pré-candidatos e mandatários, vez que o próprio Congresso Nacional, numa manobra legislativa, criou regra de excepcionalidade quando da entrada em vigor desta norma, como veremos a seguir.
A janela partidária foi inserida em nossa legislação na Reforma Eleitoral de 2015, passando a valer para as eleições de 2016, onde foi inserido na Lei dos Partidos Políticos o artigo 22-A, determinando o seu parágrafo único, em resumo, que “considera-se justa causa para a desfiliação partidária somente as seguintes hipóteses [...] mudança de partido efetuada durante o período de trinta dias que antecede o prazo de filiação exigido em lei para concorrer à eleição, majoritária ou proporcional, ao término do mandato vigente”.
Como se verifica do texto, a norma expressamente afirma que pode mudar de partido na janela aquele que está terminando seu mandato vigente, ou seja, nesse ano eleitoral, deputados federais, estaduais e distritais. Parece simples, mas a confusão se deve ao fato de que, numa manobra totalmente desarrazoada e para benefício próprio, os parlamentares federais, em fevereiro de 2016, ano de eleições municipais, em que a janela beneficiaria, em regra, somente os vereadores, criaram para si uma Emenda Constitucional (de nº 91) que previa a permissão excepcional e temporal de mudança partidária na janela para todos os parlamentares, cujo texto trazia a seguinte previsão: “Altera a Constituição Federal para estabelecer a possibilidade, excepcional e em período determinado, de desfiliação partidária, sem prejuízo do mandato. [...] Art. 1º. É facultado ao detentor de mandato eletivo desligar-se do partido pelo qual foi eleito nos trinta dias seguintes à promulgação desta Emenda Constitucional, sem prejuízo do mandato”.
Assim, verifica-se que esta excepcionalidade só valeu para as eleições de 2016, em que todos os parlamentares (deputados e vereadores) puderam mudar de partido político durante o período da janela partidária, persistindo nas demais eleições a regra geral do artigo 22-A, da Lei dos Partidos Políticos, que prevê que só pode mudar de partido aquele que está no último ano do seu mandato, portanto, nesse ano somente é permitido tal direito aos deputados federais, estaduais e distritais.
Uma outra incoerência e equívoco legislativo de grande importância que merece nossa atenção é a que determina a mudança no cálculo das sobras para eleição proporcional, que ficou conhecida como a regra 80-20, cuja previsão consta do artigo 109 e parágrafo segundo do Código Eleitoral, que determina que “os lugares não preenchidos com a aplicação dos quocientes partidários e em razão da exigência de votação nominal mínima a que se refere o art. 108 (quociente eleitoral e mínimo individual de 10%) serão distribuídos de acordo com as seguintes regras: [...] poderão concorrer à distribuição dos lugares todos os partidos que participaram do pleito, desde que tenham obtido pelo menos 80% (oitenta por cento) do quociente eleitoral, e os candidatos que tenham obtido votos em número igual ou superior a 20% (vinte por cento) desse quociente.”.
Verifica-se, novamente, um texto de péssima redação, vez que causa confusão ao leitor a expressão “desse quociente” no final do dispositivo, trazendo uma ambiguidade quando da leitura do todo, vez que essa expressão, em regra, numa análise gramatical, pode tanto corresponder ao quociente eleitoral, assim como ao referido percentual de 80% do quociente, se esse percentual for considerado como um novo quociente. E é justamente essa possibilidade de interpretação que vem causando dúvidas em pré-candidatos, bem como em alguns doutrinadores, cabendo uma explicação mais detalhada acerca de sua aplicabilidade.
Como no direito nada é escrito ao acaso, sempre que a interpretação levar a tais dúvidas, o certo é buscar conhecer os motivos apresentados no projeto de lei que deu origem a referida norma, verificando-se facilmente que os legisladores, em verdade, quiseram aplicar a regra de exigência de percentual mínimo nas sobras, tanto para o partido quanto para o candidato, com base no quociente eleitoral, ou seja, tanto os 80% (oitenta por cento) quanto os 20% (vinte por cento) mínimos exigidos referem-se diretamente ao quociente eleitoral geral, comprovando-se claramente que o problema é mesmo de redação legislativa.¹
Assim, como a nova regra trazida pela Lei nº 14.211/2021, de acordo com a nova previsão do § 2º, do artigo 109 do Código Eleitoral, para que o partido tenha direito a participar da distribuição das cadeiras remanescentes, no cálculo das sobras, a partir dessa eleição que se aproxima será necessário obter pelo menos 80% (oitenta por cento) do quociente eleitoral, bem como que os candidatos obtenham votos em número igual ou superior a 20% (vinte por cento) do mesmo quociente eleitoral, não havendo lógica que justifique a aplicação do mínimo individual sobre o percentual do quociente alcançado pelo partido no cálculo das sobras.
Em resumo, essa previsão dificulta o alcance das cadeiras no parlamento pelos candidatos, evitando que puxadores de votos beneficiem candidatos inexpressivos em detrimento de outros em melhores condições, obrigando os partidos a fazerem e refazerem cálculos, assim como a priorizarem candidatos mais relevantes, mas a discussão vai além, pois, no conjunto do que apresentamos, é evidente que, bem além da questão relacionada ao processo eleitoral, muito ainda precisamos avançar em matéria de legislação e democracia, e, certamente, muito precisamos avançar na questão da educação, pois a redação legislativa, antes de ser um problema de leis, é um grave problema educacional sistêmico que demonstra uma total falta de responsabilidade e de preocupação com o leitor/cidadão, esse, sim, o principal impactado com as leis que são aprovadas no Congresso Nacional.
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¹ https://www.camara.leg.br/noticias/804339-camara-aprova-mudanca-na-regra-de-distribuicao-das-“sobras-eleitorais e https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/04/lei-preve-novas-regras-para-sobras-nas-eleicoes-de-deputados-e-vereadores
Amilton Augusto
Advogado especialista em Direito Eleitoral e Administrativo. Vice-Presidente da Comissão de Relacionamento com a ALESP da OAB/SP (2019-2021). Membro julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ. Membro fundador da ABRADEP - Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (2015). Membro fundador e Diretor Jurídico do Instituto Política Viva. Membro do Conselho Consultivo das Escolas SESI e SENAI (CIESP/FIESP). Coautor da obra coletiva Direito Eleitoral: Temas relevantes - org. Luiz Fux e outros (Juruá,2018). Autor da obra Guia Simplificado Eleições 2020 (CD.G, 2020). Coautor da obra Dicionário Simplificado de Direito Municipal e Eleitoral (Impetus, 2020). Palestrante e consultor. Contato: https://linktr.ee/dr.amilton
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