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Em 1948 Salvador não existia. Era “a Bahia”. O interior inteiro, quando ia para a capital, dizia que estava indo para “a Bahia”. E “a Bahia” foi minha primeira grande aventura externa. Saí de Jaguaquara para a Bahia.
E chegou o mar. Nunca tinha visto o mar. Sabia que era grande e ameaçador. E ia ter que tomar o “navio da Bahiana”, da Companhia Navegação Baiana, que fazia Salvador e os outros portos da baía de Todos os Santos. De repente, numa curva, vi ao longe aquela coisa azul, enorme, espichada, como um imenso animal deitado. Era o mar.
BELO ANIMAL AZUL – O coração disparou. O trem foi se aproximando, parou perto. Fui comer meu camarão com chuchu, mas de olho no belo animal azul.
O trem parava em São Roque, havia uma meia hora para o pequeno navio sair.
Corríamos em disparada para as barracas das baianas do camarão com chuchu, a maior contribuição culinária dos africanos à cozinha brasileira. Maior do que a feijoada, porque a feijoada é complexa. Camarão com chuchu é simples, come-se com colher.
Entrei no navio, fui para a varanda, ele começou a balançar. Não muito, mas também não pouco. Todo navio balança. Não adianta propaganda. O homem jamais vai domar o animal azul.
AS LUZES ERAM PÉROLAS – Mas eu queria ver Salvador nascer de dentro do animal azul. À medida que o navio andava, um infinito cordão de pérolas começou a brilhar lá ao longe, no começo miúdas, depois crescendo, aumentando, até que viraram luzes, as luzes de Salvador, da ponta da Barra até Itapagipe.
Visão magnífica, inesquecível, para quem, como eu, via pela primeira vez. Uma cidade saindo do ventre das águas, como um parto no céu.
Com minha malinha de seminarista pobre, que estava se mudando do Seminário de Amargosa, onde estudei quatro anos, para o grandioso e glorioso Seminário Central de Santa Tereza, hoje Museu de Arte Sacra, era uma aventura. Entrei no elevador Lacerda metade com medo metade encantado. E lá de cima, abertas as portas, o animal azul lá embaixo e a ilha de Itaparica piscando luzes como se fosse um presépio de Deus.
TRÊS DIAS DE CARNAVAL – Mas o seminário só começava no primeiro dia útil de fevereiro. E aquele fim de semana era Carnaval. De batina preta, chapéu preto, 15 anos, caí nos braços da enlouquecida rua Chile, com seus carros alegóricos e cordões de fantasias, mulheres lindas desfilando suas longas coxas mágicas.
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Não havia outro caminho, era atravessar de ponta a ponta. E o povo surpreso com aquele padreco todo de preto, perdido no meio da folia. Meu roteiro era passar o fim de semana, sexta, sábado e domingo, em um pequeno hotel na rua Rui Barbosa, ao lado da Chile, e segunda-feira ir para o Santa Tereza. Até lá, noites inteiras na janela, vendo os carros desfilando, os blocos passando, homens e mulheres sambando e o povo cantando.
Diziam-me que Carnaval era coisa do Diabo. Não achei. Gostei muito.
REPETINDO CAMINHO – Sair do Seminário para fazer qualquer coisa na rua era antes de tudo repetir o belo e voluptuoso caminho do primeiro dia: subir a ladeira de Santa Tereza, virar a Carlos Gomes à esquerda, atravessar a praça Castro Alves, passar toda a rua Chile, entrar na praça Municipal, seguir pela Misericórdia, chegar à praça da Sé e ao Terreiro de Jesus.
Em 1948 não era uma caminhada. Era um desfile. No fim da tarde, na rua Chile, os homens de um lado, ternos de linho branco, chapéu e gravata, lencinho branco no bolso do paletó. Do outro, as mulheres, elegantes, cheirosas, vestidos longos, chapéus largos.
A Semana Santa, para o Cristo, era um sofrimento. Para nós seminaristas, uma festa. Quase todos os dias, às vezes de manhã, às vezes de tarde, íamos todos à monumental catedral, no Terreiro de Jesus. Do seminário até lá, uma estirada. Na Castro Alves, rua Chile, praça Municipal, Misericórdia, Praça da Sé, os engraçadinhos se divertiam: “Formigão! Formigão!”
CANTANDO NO CORO – Não podíamos responder nada. Nas cerimônias, pomposos sermões barrocos de Dom Augusto, cônego Curvelo, padre Gaspar Sadoc, padre Guerreiro, monsenhor Trabuco. E o coro do Seminário cantando solene.
Eu fazia parte do coro. Achava-me desentoado, pedia para sair, mas monsenhor Amílcar, de Feira de Santana, professor de musica, dizia que era só mudança de voz. Logo estaria cantando bem. Errou. Não aconteceu.
Mesmo assim, um dia me escalou para fazer um solo em canto gregoriano. Entrei lá pela frente, o Missal aberto, cantando a plenos pulmões. A catedral era longa, o texto grande. Fui até o altar, deixei o Missal e minha carreira de cantor. E ainda ganhei os aplausos de monsenhor Amílcar. Desconfio que ele era meio surdo.
SEBASTIAO NERY - Jornalista, Escritor e Colunista da Tribuna da Imprensa, 1968-1979.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Tribuna da Imprensa Digital e é de total responsabilidade de seus idealizadores
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