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Escrito por Marcelo Macedo Soares - Via Agenda do Poder
Em 15 de março de 1975, um dos mais significativos marcos da história político-administrativa do Brasil se concretizava: a fusão do antigo Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro. A medida, promovida pelo regime militar sob a justificativa de fortalecer a administração e unificar a gestão da capital e seu entorno, alterou profundamente a dinâmica política, econômica e social da região. Meio século depois, o impacto dessa decisão ainda é tema de debates e reflexões.
A fusão resultou na extinção do Estado da Guanabara, transformando a cidade do Rio de Janeiro novamente na capital fluminense, algo que não ocorria desde 1834. Além de mudanças administrativas, o processo trouxe desafios como a integração das estruturas governamentais, a reorganização dos serviços públicos e a disputa por poder entre as elites políticas das duas regiões. Enquanto para alguns a unificação simbolizou um passo necessário para a modernização, para outros representou um golpe na autonomia do antigo estado, que, como cidade-estado, gozava de uma independência única dentro do país.
Ao longo desses 50 anos, o Rio de Janeiro passou por transformações profundas, enfrentando crises políticas, econômicas e de segurança, ao mesmo tempo em que manteve sua relevância cultural e turística. Revisitar essa fusão é essencial para compreender os desafios e legados que moldam o Rio de Janeiro contemporâneo. Afinal, a história dessa integração ainda ecoa nas estruturas governamentais, na identidade da população e na forma como o estado se posiciona no cenário nacional.
Em 15 de março de 1975, o Brasil testemunhou um momento único em sua trajetória política: pela primeira e única vez, dois governadores transmitiram simultaneamente seus cargos a um único sucessor. Raimundo Padilha (Arena), então governador do Estado do Rio de Janeiro, e Chagas Freitas (MDB), mandatário da Guanabara, passaram o comando do novo estado unificado a Faria Lima (Arena), consolidando a fusão determinada pelo regime militar.
O presidente Geisel assina o projeto de lei da fusão (Acervo Agência O Globo)
A fusão representou o encerramento do Estado da Guanabara, que havia sido criado em 1960 durante o governo de Juscelino Kubitschek. O território, formado exclusivamente pela cidade do Rio de Janeiro, surgiu com a transferência da capital federal para Brasília e, durante 15 anos, funcionou como uma unidade autônoma. Com cerca de 1.350 quilômetros quadrados, era o menor estado do Brasil — para efeito de comparação, o atual Distrito Federal é quatro vezes maior.
A decisão de unificar os estados foi tomada pelo governo do general Ernesto Geisel, o quarto presidente do regime militar. A justificativa oficial era facilitar a administração e fortalecer economicamente a região, embora a proposta tenha gerado forte oposição no Congresso Nacional.
Documentos do Arquivo do Senado (veja no final do texto) revelam que a medida enfrentou resistência expressiva de parlamentares fluminenses e guanabarinos. Entre os seis senadores que representavam os dois estados, cinco se posicionaram contra a fusão.
Danton Jobim, senador pelo MDB da Guanabara, foi um dos mais contundentes opositores, classificando a proposta como “irracional” e “sem fundamento lógico”. Benjamin Farah, também do MDB guanabarino, alertou que a fusão resultaria no “colapso da Guanabara e no aniquilamento da província fluminense”. Já Amaral Peixoto, senador do MDB pelo Rio de Janeiro, destacou a insatisfação da população local, afirmando que a decisão foi tomada “à revelia dos cariocas e fluminenses”.
Apesar das críticas, a fusão foi concretizada e a cidade do Rio de Janeiro voltou a ser a capital do estado unificado. Faria Lima, nomeado governador pelo regime militar, assumiu o desafio de integrar as duas administrações, gerindo um território que reunia estruturas políticas e econômicas distintas.
A unificação trouxe impactos duradouros, redefinindo a organização administrativa e política da região. Apesar das promessas de benefícios, a fusão também gerou desafios que ainda ressoam na estrutura do estado do Rio de Janeiro, meio século depois.
Aprovação sem dificuldades
A aprovação do projeto de lei que determinou a incorporação do estado da Guanabara ao Rio de Janeiro, em 1974, ocorreu sem dificuldades no Congresso Nacional, refletindo a ampla maioria governista garantida pela Arena, partido que dava sustentação ao regime militar. O MDB, oposição, não conseguiu barrar a medida, apesar das tentativas de debate e da apresentação de emendas.
Diante das críticas oposicionistas, o senador Virgílio Távora (Arena-CE) sugeriu que os parlamentares do MDB buscassem alterar o texto por meio de emendas dentro do processo legislativo. No entanto, o senador Amaral Peixoto, um dos líderes oposicionistas, manifestou desconfiança quanto ao real impacto dessas sugestões.
“Vamos apresentar as emendas, mas confesso a Vossa Excelência que estamos com muito receio do destino que terão, porque temos a experiência aqui no Congresso de que elas geralmente vão para a vala comum”, declarou Peixoto durante os debates.
A proposta foi encaminhada ao Congresso em 4 de junho de 1974 e rapidamente aprovada por senadores e deputados, recebendo a sanção do presidente Ernesto Geisel em 1º de julho do mesmo ano. Com a implementação da lei, em 1º de março de 1975, a capital do estado do Rio de Janeiro passou oficialmente a ser a cidade do Rio, enquanto Niterói perdeu o status de sede do governo estadual e se tornou um município comum.
Os debates sobre a fusão começaram meses antes da formalização do projeto, impulsionados por reportagens na imprensa que indicavam a intenção do governo de extinguir o estado da Guanabara. Apesar das tentativas de resistência, a oposição não conseguiu alterar os rumos da decisão, consolidando uma das mudanças territoriais mais marcantes da história política brasileira.
Novo estado, novo governador
A escolha do primeiro governador do novo estado ficou a cargo do presidente Ernesto Geisel, que nomeou o vice-almirante Floriano Peixoto Faria Lima em 3 de outubro de 1974. Faria Lima assumiria oficialmente o comando do Rio de Janeiro na data da fusão, 15 de março de 1975. Antes mesmo da oficialização, os preparativos estavam em andamento: em janeiro daquele ano, o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) iniciou a substituição de placas indicativas de “Guanabara” por “Rio de Janeiro” em aproximadamente 800 quilômetros de estradas.
A transição também trouxe mudanças nas administrações municipais. Em 28 de fevereiro de 1975, foi anunciado o novo prefeito do Rio de Janeiro: o engenheiro Marcos Tito Tamoyo da Silva, de 49 anos, que considerava o transporte de massas o principal desafio da cidade. Em Niterói, a escolha para o cargo de prefeito recaiu sobre Ronaldo Arthur da Cruz Fabrício, indicado por Faria Lima, que declarou ter como principal objetivo “humanizar a cidade”.
A transição oficial aconteceu em uma cerimônia marcante. No final da tarde de 14 de março de 1975, a bandeira do Estado da Guanabara foi arriada pela última vez no Palácio Guanabara, em Laranjeiras. No dia seguinte, no mesmo local, Floriano Peixoto Faria Lima tomou posse como governador do novo Estado do Rio de Janeiro, recebendo o cargo das mãos do ministro da Justiça, Armando Falcão. A cerimônia contou com a presença dos ex-governadores Chagas Freitas (Guanabara, 1970-1975) e Raimundo Padilha (Estado do Rio, 1971-1975), que posteriormente faleceu em 1988.
Em março de 1975, Raymundo Padilha, governador do Rio de Janeiro, e Chagas Freitas, da Guanabara, transmitem o poder a Faria Lima, governador do novo estado do Rio de Janeiro (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro)
Faria Lima permaneceu à frente do estado até 1979, quando Chagas Freitas retornou ao poder, eleito indiretamente como governador, cargo que ocupou até 1983. Chagas faleceu em 30 de setembro de 1991, e Faria Lima, em 9 de julho de 2011.
Impactos culturais e econômicos
Com a oficialização da fusão em 1º de março de 1975, a redefinição da identidade do Rio de Janeiro se mostrou um desafio complexo. As diferenças entre a antiga capital do Império e da República – que historicamente concentrava o simbolismo nacional – e as demais regiões do estado se tornaram evidentes. Embora a capital federal tivesse sido transferida para Brasília em 21 de abril de 1960, a Guanabara ainda desempenhava um papel central na política brasileira, uma posição que só foi completamente alterada com investimentos que consolidaram Brasília como o centro administrativo do país.
A nova configuração territorial também levantou questões culturais. Muitos se perguntavam se os habitantes da capital passariam a se identificar como naturais do estado do Rio de Janeiro ou apenas da cidade. A expressão “carioca”, historicamente usada para designar os moradores da cidade, surgiu com a criação do Município Neutro em 1834, que separou a cidade do restante da antiga província fluminense. Antes disso, todos eram chamados de fluminenses, termo derivado do latim “flumens”, que significa rio. Atualmente, a distinção se mantém: “carioca” refere-se aos nascidos na cidade do Rio de Janeiro, enquanto “fluminense” designa os nascidos em qualquer parte do estado.
A fusão também impactou financeiramente a antiga Guanabara. Com a unificação, o novo estado perdeu sua arrecadação própria e os repasses federais passaram a ser redistribuídos por todo o território expandido. Na época, os royalties do petróleo, que mais tarde trariam recursos significativos, ainda não beneficiavam o estado.
Muitos cariocas se mostraram descontentes com a mudança, lamentando a perda do status político-administrativo da cidade, agora reduzida a um município dentro de um estado maior. O sentimento de insatisfação foi sintetizado pelo último secretário de Planejamento da Guanabara, Francisco de Melo Franco, que expressou sua frustração: “O Rio de Janeiro faz parte da história mundial. Como pode ser um município como outro qualquer?”.
O economista, professor da UFRJ, doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e autor do livro Rio Nacional, Rio Local: Mitos e Visões da Crise Carioca e Fluminense, Mauro Osório, especialista nos impactos econômicos da fusão, acredita que a visão negativa que se tem sobre os impactos econômicos da fusão se deve muito mais pela crise econômica que atingiu o Brasil nos anos 80 do que a unificação dos estados.
Em um de seus artigos sobre o tema, Mauro Osorio diz que um dos argumentos usados para justificar a fusão foi um diagnóstico da Federação das Indústrias do Estado da Guanabara e dentro de uma estratégia geopolítica de Golbery e Geisel de descentralizar territorialmente o desenvolvimento econômico brasileiro.
“A ideia da fusão, que hoje encontra na sociedade uma difusa visão negativa, apresenta, inicialmente, em 1979, um diagnóstico positivo no trabalho referencial de Ana Maria Brasileiro intitulado ‘A fusão: análise de uma política pública’. Entendo que a visão negativa atual sobre a fusão tenha correlação com o fato de, logo após a implantação da mesma, ter ocorrido a crise dos anos 80, que atingiu sobremaneira a cidade do Rio de Janeiro, e mesmo o antigo estado do Rio, por terem atividades econômicas fundamentalmente voltadas para o mercado nacional e apresentarem grande dependência do gasto público federal”, escreveu Mauro.
Ainda segundo o economista, a ausência de estratégias regionais adequadas de desenvolvimento econômico-social na Guanabara e, posteriormente, no novo estado, deriva centralmente da história de capitalidade de seu núcleo central, o que faz com que os hábitos e atenções se voltem para a temática nacional, dedicando-se pouca reflexão à questão regional.
Os protagonistas que viveram e vivem a fusão
Como já dito acima, até hoje a fusão divide opiniões, inclusive daqueles que participaram diretamente do processo de transformação do Estado do Rio, como é o caso do ex-governador e ex-prefeito de Niterói, Moreira Franco, como também dos protagonistas atuais, caso do governador Cláudio Castro e dos prefeitos Eduardo Paes e Rodrigo Neves.
Moreira Franco foi o primeiro prefeito de Niterói eleito pelo voto direto após a fusão. Ele sucedeu o engenheiro Ronaldo Fabrício, que nomeado pelo governador Faria Lima ficou no cargo entre 15 de março de 1975 e 31 de janeiro de 1977. Na opinião de Moreira Franco, houve uma precipitação desnecessária, motivada por objetivos políticos.
“Na minha opinião, e já naquela época falava sobre isso, houve uma precipitação desnecessária, certamente objetivada por objetivos políticos e não de natureza administrativa para garantir uma qualidade de vida melhor para a população. Essa pressa foi prejudicial, pois não houve estudos de natureza econômica, social, que precisavam ter sido realizados, com uma avaliação cuidadosa das necessidades da população”, afirma.
Moreira Franco acredita que o processo da fusão deveria ter sido discutido com a população
“Essa mudança consolidou o Rio como um dos principais centros do país, mas também trouxe desafios”
O governador Cláudio Castro afirma que a fusão foi um passo decisivo para a integração territorial, administrativa e econômica da região. Na opinião do governador, a mudança consolidou o Rio como um dos principais centros do país, mas também trouxe desafios, especialmente no equilíbrio fiscal e na adaptação das finanças estaduais.
“A fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, há 50 anos, foi um passo decisivo para a integração territorial, administrativa e econômica da região, permitindo avanços na infraestrutura, no desenvolvimento metropolitano e na unificação de políticas públicas. Essa mudança consolidou o Rio como um dos principais centros do país, mas também trouxe desafios, especialmente no equilíbrio fiscal e na adaptação das finanças estaduais, uma vez que não houve um plano de transição com compensações adequadas. Hoje, ao celebrarmos esse marco, é fundamental reconhecer tanto os avanços conquistados quanto a necessidade de medidas que reforcem a sustentabilidade econômica do estado, garantindo um futuro mais próspero e equilibrado para os fluminenses”, salientou Castro.
O governador Cláudio Castro afirma que o processo foi importante para o estado, mas trouxe novos desafios
“A cidade foi muito prejudicada com a fusão forçada da Guanabara com o Estado do Rio”
O prefeito do Rio, Eduardo Paes, pensa diferente e afirma que a cidade, que já tinha entrado em decadência econômica com a transferência da capital federal para Brasília, em 1960, foi muito prejudicada com a “forçada fusão da Guanabara com o Estado do Rio”.
“Qualquer especialista ou literatura vai classificar a retirada da capital do Rio de Janeiro (1960), seguida pela forçada fusão da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro (1975), como fator determinante da decadência econômica da cidade. Entre os motivos, a falta de compensação pela perda dos fundos constitucionais que custeavam os serviços básicos do município. Vale ressaltar que mesmo após a transferência da capital para Brasília, permaneceram no Rio cerca de 300 órgãos públicos, autarquias e fundações federais, responsáveis por 180 mil empregos federais na cidade – aproximadamente 20% do total dos empregos federais.
Paes aproveitou ainda a data histórica para reforçar o pedido para que a cidade do Rio seja elevada à condição de capital honorária do Brasil.
“Mais de 500 empresas públicas e sociedades de economia mista, como a Petrobras, mantém suas sedes no Rio, gerando quase 100 mil empregos. A cidade também é sede da Marinha, guardando enorme contingente militar. Como resultado, o Rio segue como uma cidade singular na federação brasileira. A roupagem jurídica é de município comum e capital de estado, entulho autoritário da ditadura militar. Mas seu perfil cívico e administrativo segue sendo o que sempre foi: uma cidade federal, capital simbólica e internacional de um país. Por esses e outros motivos e para aproveitar essa data simbólica de 50 anos da fusão, resolvemos pleitear junto ao governo federal que a cidade do Rio seja elevada à condição de capital honorária do Brasil. Um ato que será o primeiro passo generoso de compensação ao nosso município”, sugeriu.
Para Eduardo Paes, a fusão sacramentou a decadência econômica da cidade, iniciada com a transferência da capital federal para Brasília
“Foi uma imposição muito grave a Guanabara e ao antigo Estado do Rio, com consequências até os dias de hoje”
Para o prefeito de Niterói, Rodrigo Neves, a fusão foi autoritária, sem qualquer debate democrático ou planejamento prévio.
“Foi uma imposição muito grave a Guanabara e ao antigo Estado do Rio, com consequências até os dias de hoje”, ressaltou.
“O novo Estado do Rio até hoje não concluiu o processo de integração e desenvolvimento do conjunto de seu território. A perda da capital federal em 1960, a ‘maldição do holandesa do petróleo’ e a fusão representam os principais problemas estruturais do Estado. Em relação a Niterói, que foi a capital fluminense por mais de 140 anos, a fusão foi a maior violência em seus 451 anos de história. De uma hora para outra, Niterói perdeu a sede e instalações dos poderes e nunca recebeu qualquer compensação, entretanto a cidade e a sociedade niteroiense se reinventaram e graças ao ciclo de boas administrações e governos democráticos, transformamos Niterói na capital da qualidade de vida do Estado do Rio de Janeiro”, destacou Rodrigo Neves.
Para o prefeito de Niterói, Rodrigo Neves, a fusão foi autoritária, sem qualquer debate democrático ou planejamento prévio
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