A Crise Existencial do Sentimento Coletivo: Um Desafio para a Humanidade - Por Luciano Martins

A Crise Existencial do Sentimento Coletivo: Um Desafio para a Humanidade - Por Luciano Martins

   Ao longo dos séculos, a coletividade não apenas garantiu a sobrevivência da espécie, mas delineou os contornos da civilização. Desde as tribos ancestrais, onde a interdependência era vital, até os grandes movimentos que reconfiguraram a história, o senso de pertencimento orientou as mais significativas transformações humanas. No entanto, o individualismo, exacerbado em sua forma mais predatória, impôs uma nova dinâmica, dissolvendo vínculos essenciais e desestruturando o espírito comunitário. Surge, então, uma indagação incontornável: o que levou ao esfacelamento desse ethos que outrora moldou sociedades?

A resposta, longe de se encerrar em uma tese simplista, pode ser resgatada nos alicerces da história. Na Grécia Antiga, a pólis transcendia a mera organização política, constituindo-se no âmago de uma sociedade participativa. Para Aristóteles, a plenitude humana só se concretizava na esfera pública, onde o indivíduo encontrava propósito na vida cívica. Essa concepção, embora desafiada por distintas correntes ao longo dos séculos, manteve-se como referencial estruturante. Na Idade Média, ainda que permeada por desigualdades rígidas, o sistema feudal engendrava relações de mútua responsabilidade. As guildas medievais, por exemplo, consolidavam laços de proteção e solidariedade entre artesãos e comerciantes, criando uma rede de suporte que fortalecia o tecido social.

O Iluminismo, por sua vez, deslocou o eixo da existência para o indivíduo. O predomínio da razão e a afirmação dos direitos subjetivos impulsionaram avanços irrefutáveis, mas, como efeito colateral, relegaram o coletivo à função de mero instrumento. Esse deslocamento gerou um paradoxo: o fortalecimento do “eu” enfraqueceu o “nós”. Ainda assim, o século XX demonstrou a resiliência da ação conjunta. O movimento operário, impulsionado pela Revolução Industrial na Inglaterra, e as lutas anticoloniais, como a independência da Índia sob a liderança de Mahatma Gandhi, evidenciaram que as grandes conquistas da humanidade sempre foram forjadas na esfera coletiva.

Nas últimas décadas, o advento do neoliberalismo consolidou o individualismo como paradigma dominante. O sociólogo Zygmunt Bauman descreveu essa transição como a era da “modernidade líquida”, um tempo em que as estruturas outrora sólidas foram corroídas, deixando o indivíduo à deriva em um mundo instável. Diferente da modernidade anterior, na qual a identidade era esculpida pelos laços comunitários e pelas instituições, a fluidez contemporânea pulverizou essas referências, produzindo uma sociedade volátil e desprovida de ancoragem. A busca incessante por gratificação imediata, em detrimento do compromisso e da responsabilidade mútua, resultou em uma cultura marcada pela solidão e pela efemeridade das relações.

Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, aprofunda essa crítica ao diagnosticar a exaustão psíquica imposta pelo modelo atual. Na sociedade da performance, o indivíduo se torna um eterno empreendedor de si mesmo, condenado à autoexploração sem descanso. O culto à produtividade e à exposição contínua não apenas dilui a coletividade, mas exacerba o isolamento e a sensação de vazio. O vínculo social, que outrora nutria a subjetividade, é substituído por um cenário de competição incessante e validação fugaz.

O historiador e pensador israelense Yuval Noah Harari, alerta para os desafios globais que tornam a fragmentação social ainda mais perigosa. Problemas como a crise climática, pandemias e colapsos econômicos ilustram o equívoco da lógica individualista. Em suas obras, Harari argumenta que tais ameaças só podem ser enfrentadas por meio de uma coordenação supranacional que restaure o sentido de interdependência global. O mundo contemporâneo não pode mais se dar ao luxo de sustentar a ilusão do isolamento; a cooperação tornou-se não apenas desejável, mas indispensável para a sobrevivência da civilização.

 

Entretanto, o individualismo contemporâneo distorce o significado do “nós”, tratando-o como um entrave à liberdade, quando, na verdade, ele é seu alicerce. O que se faz necessário é uma reconciliação entre a esfera íntima e a coletividade, onde a autenticidade do sujeito não se manifeste no exílio, mas na conexão. A verdadeira autonomia não reside no afastamento, mas na interação significativa. Martin Buber sintetiza essa ideia ao afirmar que toda vida genuína nasce do encontro – é na relação entre o “eu” e o “tu” que algo maior se constrói.

O desafio de resgatar o coletivo não é apenas uma questão de ressonância histórica, mas de sobrevivência. O cenário atual assemelha-se a um deserto existencial, onde a dispersão e o vazio se tornaram estados permanentes. O “nós” foi relegado à condição de abstração, enquanto o “eu”, solitário e vulnerável, prospera sobre os escombros de uma estrutura social em colapso. Se não formos capazes de reconstituir os laços que nos sustentam, restará apenas uma sociedade apática, engolfada pela alienação e pela indiferença. O resgate do senso de pertencimento não é uma concessão filosófica; é a última chama capaz de evitar a derrocada definitiva da humanidade.

O caminho para essa reconstrução exige ação concreta. É imperativo reocupar os espaços coletivos, fortalecer o engajamento cívico e fomentar políticas que promovam a coesão social. A participação ativa em iniciativas comunitárias, a valorização da educação como ferramenta integradora e a restauração da solidariedade como princípio norteador da vida pública são passos fundamentais para restaurar aquilo que nos foi dilapidado. Somente assim será possível reacender a centelha que nos conecta ao todo, lembrando-nos de que a existência humana não se resume à esfera do indivíduo, mas se plenifica na construção conjunta de um futuro digno.

 

Luciano Martins é advogado, assessor parlamentar e vice-presidente da União Brasileira de Apoio aos Municípios (UBAM) no Mato Grosso do Sul. Com ampla experiência na gestão pública, atuou como secretário-adjunto de Governo, controlador-adjunto e diretor-presidente da Fundação Social do Trabalho de Campo Grande (Funsat), contribuindo para o desenvolvimento de políticas públicas e fortalecimento do municipalismo.

Por Jornal da República em 11/02/2025

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