A ditadura despertada

Quando se diz 'movimento' em vez de 'ditadura', o passado real torna-se outro (Arte Andreia Freire/Revista CULT)

A ditadura despertada

O ministro Dias Toffoli, presidente do STF, chamou um general para sua assessoria. O fato inusitado e difícil de compreender pode ter ganho luz pouco tempo depois. Em palestra na Faculdade de Direito da USP, justamente em evento que celebrava os 30 anos da Constituição de 1988, o ministro disse que hoje não prefere mais chamar o golpe de 1964 de golpe ou revolução, mas de “movimento”.

Movimento é uma palavra de múltiplos sentidos. O Houaiss registra 14 acepções. Vejamos as que podem ser mais pertinentes em uma análise sobre a “preferência” do ministro: um movimento pode ser um conjunto de ações de um grupo de pessoas mobilizadas por um mesmo fim; pode ser partido, agrupamento, organização que vise a mudanças políticas ou sociais. Nesses sentidos, a totalidade da esfera política de uma sociedade é composta por movimentos. Partidos políticos, sindicatos, organizações da sociedade civil, defensores dos direitos humanos, organizações neonazistas. Tudo é movimento.

Usar uma palavra com um sentido tão genérico para algo concreto é uma forma de ocultar o real. De produzir uma fake news histórica para colocar na obscuridade que após a deposição do presidente constitucional em 1964 milhares de brasileiros foram exilados ou tiveram seus direitos políticos suspensos, milhares foram torturados e cerca de 400 pessoas mortas ou desaparecidas. Crimes contra a humanidade.

De acordo com todos os padrões de conhecimento das ciências sociais e políticas, houve um golpe e foi instaurada uma ditadura que durou 21 anos. É um conceito e não “preferência”. Preferência pressupõe uma escolha e não há escolha diante de um conceito. Ou ele é usado ou há dissimulação, engano ou mentira

Amelinha Telles estava na cadeira  do dragão. Uma cadeira elétrica em que a vítima era amarrada, com fios em suas orelhas, língua, uretra e seios, se mulher. Nua, torturada durante toda uma noite, urinada, vomitada, tomando choques no ânus, vagina, seios, umbigos, ouvidos e boca, foi exibida nessas condições a seus dois filhos, então uma menina de 6 anos e um menino de 5 anos. O menino retrocedeu, voltou a ser bebê. A menina menstruou aos 7 anos. O primeiro tapa em Amelinha foi dado por Ustra, o herói de Jair Bolsonaro.

Denominar de “movimento” a ditadura que produziu esta e milhares de outras barbáries é tal qual a novilingua de “1984”, o clássico de George Orwell.  A língua modificada e reduzida para embaralhar sentidos. A redução das palavras tinha o objetivo de limitar a inteligência e a percepção do real para criar outra realidade. Guerra era paz, liberdade era escravidão e ignorância era força. Quando se diz movimento em vez de ditadura ou golpe, a percepção do mal político é afetada e o passado que era real torna-se outro.

Modo semelhante de velamento do real pela linguagem vimos no recente julgamento do caso Merlino no Tribunal de Justiça de São Paulo. A ditadura militar foi designada como “a chamada ditadura militar” e Ustra chamado de “suposto torturador”, apesar de existirem nos autos abundantes provas de que ele era torturador, além de dezenas de testemunhos registrados pela História.

“Quando você não acerta suas contas com a História, a História te assombra”, disse estes dias o filósofo Vladimir Safatle. Ao contrário dos argentinos, uruguaios e chilenos, deixamos impunes todos os crimes da ditadura militar. Na Argentina houve cerca de 500 julgamentos por crimes contra a humanidade e ditadores morreram na prisão. Aqui, a pérfida autoanistia, desprovida de qualquer sentido ético e jurídico defensável, vingou e persistiu mesmo após a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Lembro duas observações cruciais de Adorno em Educação após Auschwitz. A primeira: a pouca atenção dada à exigência que Auschwitz não se repita prova que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas. A segunda: quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu e seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo.

Cabe para nós. Não fizemos a ruptura porque a monstruosidade não calou fundo e sempre que se tergiversou para que não ocorresse o ajuste de contas com o passado podemos suspeitar de algo do tipo “nem foi tão grave assim”. Como não fizemos a ruptura, não matamos a ditadura. Nós a deixamos adormecida e agora vemos o monstro despertar.

Por isto, porque não fizemos a ruptura, porque não acertamos contas com o passado, foi possível que um político obscuro tivesse se tornado o favorito às eleições presidenciais declarando-se favorável à tortura, à ditadura e a grupos de extermínio. Por isso, militares que nunca viram seus predecessores serem chamados à responsabilidade hoje se movimentam assombrando a sociedade e nos ameaçando com uma era de trevas.

É verdade que a ascensão da direita é um fenômeno mundial. Mas entre nós, porque temos essa dívida com o passado que nunca resgatamos, o que se anuncia é muito mais grave do que um mandato conservador, como o de Macri ou o de Trump. O que se anuncia é a barbárie.

Os sinais da barbárie estão por aí. No assassinato de um eleitor do PT na Bahia, no assassinato de uma travesti aos gritos de “Bolsonaro” em São Paulo, na suástica rasgada na pele de uma jovem no Rio Grande do Sul. A barbárie se anuncia na proposta de tornar isento de processo o policial que mata em serviço.

O efeito do fenômeno Bolsonaro é como o dos círculos concêntricos provocados por uma pedra na água. A partir dela, os círculos se ampliam em ondas cada vez maiores. Uma mente primitiva alçada à condição de liderança política libera uma terrível energia destrutiva em todo o meio social, desata instintos reprimidos, impulsiona personalidades autoritárias.

Que não se veja, em todo esse processo insano que vivemos, uma aventura política de um ex-capitão de pendores nazistas. Essa loucura normalizada pelos grandes meios de comunicação está sendo cavalgada pelo mercado – por um projeto de classe.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP

Por Jornal da República em 11/01/2024
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