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Hoje em dia não tão lembrada como deveria ser, ainda mais diante dos desejos autoritários de Jair Bolsonaro e de muitos dos seus apoiadores, o final de agosto e início de setembro de 2021 representa a efeméride dos sessenta anos da Campanha da Legalidade, uma mobilização organizada por setores da sociedade civil, sob liderança de Leonel Brizola, na época governador do Rio Grande do Sul, efetuada para garantir a posse de João Goulart como presidente da República após renúncia do titular do cargo, Jânio Quadros.
Eu gostaria de aproveitar o espaço que tenho na Tribuna da Imprensa para relatar os principais fatos em torno da Campanha da Legalidade. Para realizar essa tarefa vou me amparar no livro Brasil: de Getúlio a Castelo, do historiador norte-americano Thomas Skidmore.
No dia 25 de agosto de 1961, sete meses após assumir à presidência da República, Jânio Quadros renunciou ao cargo. Naquele momento a política brasileira era polarizada entre os defensores e os críticos da herança política de Getúlio Vargas, especialmente a bandeira varguista do capitalismo nacional. Jânio Quadros parecia transcender essa polarização. A sua rápida ascensão política, de vereador pela capital paulista ao posto máximo da nação em pouco mais de uma década, foi feita a partir da construção da sua imagem como antipolítico, figura honesta e do povo que prometia acabar com a corrupção do país.
Até hoje se discute os reais motivos do gesto de Jânio Quadros. Uma das teses mais defendidas pela historiografia é que o presidente tentou um autogolpe. A ideia seria, a partir da renúncia, angariar a mobilização da população para retornar ao poder com poderes ampliados. Nos meses que ficou na presidência Jânio Quadros se desgastou com a direita, em face da política externa de diálogo com o bloco comunista, e com a esquerda, por sua pauta moralista e ortodoxia econômica. Contudo, a população não se mobilizou. Se esse era o plano, ele falhou.
Com a renúncia de Jânio Quadros cabia ao vice-presidente assumir o cargo. O vice era João Goulart (Jango), antigo Ministro do Trabalho do governo Getúlio Vargas (1950-1954) e que era considerado seu herdeiro político. Uma figura que despertava forte oposição entre os militares e a classe política mais conservadora, vide UDN do Carlos Lacerda. No dia da renúncia de Jânio Quadros ele estava em viagem oficial na China comunista.
A Constituição de 1946 estabelecia que em situação de renúncia cabia ao vice assumir o cargo. Como Jango estava em missão oficial no exterior, Ranieri Mazzilli, Presidente da Câmara dos Deputados, assumiu interinamente a presidência. Contudo, os ministros militares (Guerra, Aeronáutica e Marinha) é que assumiram o poder de fato. Imediatamente eles declararam estado de sítio para impedir manifestações públicas de apoio ao herdeiro político de Vargas. O objetivo era manter Ranieri Mazzilli na presidência e convocar novas eleições para que uma outra pessoa assumisse a faixa presidencial.
O país estava em transe. O que os ministros militares desejavam era inconstitucional. Nos dias que se seguiram o Congresso rejeitou vetar a posse de Jango. A crise política se acentuou quando o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, liderança trabalhista e aliado de João Goulart, começou a articular uma resistência para que Jango assumisse a presidência e alegando que a ação dos ministros militares era um golpe.
Leonel Brizola mobilizou a população, a polícia estadual e as emissoras de rádio, formando uma “Cadeia da Legalidade” para denunciar ao país que as forças armadas articulavam um golpe, com apoio de setores conservadores da sociedade, para impedir a posse de Jango. Durante a Campanha da Legalidade foi ventilada a ideia de bombardear o Palácio Piratini, sede do governo do RS. Porém, a união das forças armadas foi rompida quando o general Machado Lopes, comandante do Terceiro Exército, declarou apoio a causa legalista.
Na iminência de uma guerra civil foi articulada uma ação conciliatória. No dia 02 de setembro o Congresso Nacional aprovou uma emenda à Constituição que instituía o parlamentarismo, revogado em 1963 via plebiscito, com a finalidade de reduzir os poderes políticos de Jango. Este, por sua vez, que retornou ao Brasil por um trajeto circular, indo da China para Singapura, Paris, Nova York e Montevidéu, para a partir do Uruguai chegar ao RS, aceitou o regime parlamentarista e assumiu a presidência no dia 07 de setembro.
A Campanha da Legalidade ficou na história política brasileira como um episódio exemplar de mobilização da população em defesa da democracia e pelo respeito à Constituição. Em 1964, quando as forças armadas assumiram o poder político que resultou em uma ditadura militar que só acabaria em 1985, o episódio da Legalidade foi proscrito da história oficial do país como um “péssimo exemplo”. É que os regimes ditatoriais não gostam que pensar na população se mobilizando em defesa de direitos democráticos.
Ricardo Oliveira da Silva
Doutor em História pela UFRGS e docente do Curso de História da UFMS/CPN
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