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Por BRUNO HUBERMAN*
Na última terça-feira (08/02), o podcaster Bruno Aiub, conhecido como Monark, foi demitido de seu programa, o Flow, um dos maiores do país, depois de ampla pressão exercida por patrocinadores, organizações judaicas e as redes sociais por defender a legalização de um partido nazista no Brasil.
No contexto de sua argumentação contrária à “criminalização de um partido nazista”, reivindicou o direito de um sujeito ser “anti-judeu”, isto é, antissemita.
Foi interessante notar como a discussão de Monark e a sua interlocutora, a deputada Tabata Amaral (PSB-SP), sobre o nazismo girou exclusivamente em torno da questão judaica. Da mesma forma, foi majoritariamente a discussão que tomou as redes sociais nas horas e dias subsequentes ao programa que vieram a resultar na sua demissão.
Monark, inclusive, pede desculpas exclusivamente à comunidade judaica, pela sua “insensibilidade”.
A forma como essa discussão se desdobrou nos últimos dias é, de certa forma, decorrente da maneira pela qual a história do nazismo e do Holocausto tem sido retratadas no discurso público nas últimas décadas. O nazi-fascismo e o Holocausto, contudo, não dizem respeito somente ao judaísmo, antissemitismo e afins.
É verdade que o Holocausto se voltou de forma intensa contra a população judaica, o que resultou na morte de seis milhões de pessoas, mas é verdade também que outras tantas milhões de pessoas mortas eram negros, homossexuais e ciganos. Ademais, milhões de antifascistas, em particular comunistas e anarquistas, tombaram para derrubar o nazismo.
Tornar o nazismo uma questão exclusivamente judaica faz parte de uma campanha de propaganda deliberada israelense-sionista para justificar a existência do Estado de Israel sobre o território palestino e os crimes que vem cometendo nas últimas décadas. Cabe notar que o deputado Kim Kataguiri (Podemos-SP), que também se manifestou contrário a criminalização de um partido nazista na conversa com Monark, se prontificou logo depois do episódio, esclarecendo que “sempre foi a favor do Estado de Israel”.
O Museu do Holocausto em Jerusalém (o Yad Vashem), construído sobre as ruínas do vilarejo palestino destruído na Nakba, representa exatamente essa narrativa. O visitante do museu, após passar por um labirinto em que é apresentado o horripilante genocídio dos judeus na Europa — a menção a vítimas não judaicas é lateral —, termina o seu tour em uma sala clara em que é demonstrada a chegada dos judeus à Palestina sob o Mandato Britânico, onde finalmente se encontrariam em segurança com a criação de Israel.
Isto é, há uma correlação direta entre o Holocausto europeu, que termina em 1945, e a criação de Israel na Palestina, em 1948. Como se fosse causa e consequência. Não por acaso, a visita é obrigatória para todos os diplomatas que viajam para Israel.
Tampouco é casual que os sionistas, como são conhecidos os nacionalistas judeus, chamam o Holocausto pelo seu termo em ídiche: shoah. É apenas a metade da história que busca se colocar como universal — algo comum na história ocidental. Retratados enquanto as únicas vítimas da suposta maior barbárie da história ocidental, aos judeus sionistas foi assegurada a liberdade da barbárie para obter a sua liberdade liberal na forma de autodeterminação jurídica e soberana na forma de um Estado nacional sobre um território às custas da autodeterminação do povo nativo que ali vivia.
O resultado foi a limpeza étnica da Palestina em 1948, quando foram expulsos mais de 700 mil palestinos de suas casas e mais de 400 vilarejos destruídos. Observadores internacionais, como a ONU, e a mídia global, sabiam o que estava acontecendo, mas preferiram se calar.
Dessa forma, os palestinos pagaram e continuam a pagar pelos crimes — e a culpa — do Ocidente contra os judeus na Europa. Pois os palestinos, enquanto um povo não-europeu oriental, são, na hierarquia racial global, considerados inferiores aos judeus europeus, que mesmo não considerados brancos pelos europeus naquele contexto, estavam acima dos árabes.
Portanto, detinham o direito de participar da colonização do Oriente Médio ao lado dos britânicos como parte da missão civilizadora dos povos orientais para alcançar a sua autodeterminação que os europeus lhes negavam em seu continente de origem.
Após a Segunda Guerra Mundial, o antissemitismo é transformado em um limite moral que ninguém pode cruzar. Monark já fora racista contra negros em outubro de 2021, o que lhe custou patrocinadores, mas não o emprego. Contudo, ser racista contra judeus, por cujas mortes o Ocidente liberal carrega a culpa, tornou-se uma linha vermelha que não pode se cruzada.
Mesmo no país em que a escravidão da população preta e o genocídio da indígena é o que estrutura racialmente a sociedade – o que não ocorre com o racismo antijudaico. Apesar disso, as vidas judaicas acabam por valer mais que as negras e as indígenas na hierarquia racial brasileira.
Enquanto aqueles que foram, supostamente, as únicas vítimas do maior crime da história do Ocidente, os judeus e o seu Estado são alçados a guardiões do liberalismo. Aqueles que conhecem intimamente os limites da liberdade liberal — e, portanto, aqueles que jamais ultrapassariam estes limites.
É essa a razão de as críticas e condenação a Israel, que o apontam como um Estado de apartheid e que viola inúmeros direitos humanos dos palestinos em discordância com a lei humanitária internacional, ser algo que confunde os bastiões liberais contemporâneos. Como nota o intelectual palestino Joseph Massad, foi apenas quando se tornaram opressores de um outro povo não-europeu é que os judeus passaram a ser vistos como ocidentais pelos europeus.
Cabe destacar ainda que mais da metade dos judeus que vivem em Israel não partilham da tragédia do Holocausto. São judeus sefaraditas, que viviam na África e na Ásia, e que não experimentaram diretamente na pele o antissemitismo europeu que levou ao Holocausto — o racismo antijudeu é uma história vivida essencialmente por judeus europeus.
Inclusive, os judeus de origem europeia, os ashkenazim, exercem em Israel um regime de opressão e exploração sobre os judeus orientais, os sefaraditas (ou mizrahim). Israel é, assim, o único lugar do mundo em que há uma hierarquia entre comunidades judaicas, algo que não se registra no Brasil ou nos Estados Unidos, por exemplo.
O caso Monark é revelador de alguns desses descompassos no debate sobre o racismo hoje. Ele mostra que o tema não deve ser obliterado e que está na hora de alterar a forma como discutimos a história do nazismo e do Holocausto, para que mudemos também a forma como debatemos o sionismo e Israel atualmente.
(*) Bruno Huberman é professor de Relações Internacionais da PUC-SP.
A posição do artigo não reflete necessariamente a opinião desta Tribuna
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