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Afinal de contas, o que é “identidade de gênero”? O erro está em debater a questão apenas do ponto de vista fisiológico, como têm feito o Sr. Richard Dawkins e a Sr.ª J. K. Rowling, mais uma vez mostrando a sua superficialidade ao tratar de questões humanas (subjetivas) como se estivessem em um exame médico laboratorial.
Rowling e Dawkins podem ser tudo, menos preconceituosos, logo, para terem abordado a questão de uma forma tão pouco circunspecta, embora sejam insuspeitos, é porque ainda enxergam o mundo com as lentes do establishment que procuram combater com as suas obras.
Se uma transexual diz “eu me sinto u'a mulher presa em um corpo de homem”, então, ela já sabe que o seu corpo é “masculino”. Se ela pede uma cirurgia de transgenitalização, é porque também sabe que seu hióide é acentuado, que suas gónadas são testículos e não ovários, que seus pares cromossômicos são “XY” e não “XX”. Até aqui, falamos o óbvio, e ao remeter à “genética” ou à “fisiologia” para definir quem é “mulher” ou “homem”, somente estaremos redundando naquilo que já é a causa do desconforto (disforia) que marca a vida dessa pessoa.
A sociedade já evoluiu, desde a primeira edição da “Enciclopédia Britânica”, que trazia no verbete “mulher” a definição “fêmea do homem”. Ora, a identidade do “feminino” não decorre de nenhum aspecto de seu corpo, logo, “mulher” é mais do que apenas a contraparte do macho da espécie humana.
A questão, portanto, não é do domínio da Medicina, mas das Humanidades. “Identidade de gênero” é um CONSTRUCTO social, como observado por Simone de Beauvoir na abertura do seminal “O Segundo Sexo”: “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher”. A nossa sociedade criou os papéis que espera que homens e mulheres desempenhem, e discrimina os que não coincidem o sexo biológico com os papéis e identidade de gênero arbitrariamente definidos como “pertinentes”. E, veja-se que esses papéis e identidade não são determinados pelo sexo biológico; não existe “roupa de mulher” ou “roupa de homem”, por exemplo, como se espermatozóides fizessem nascer calças, e óvulos fizessem crescer saias.
A pessoa transexual não é uma “inadaptada” a cumprir com os papéis “do seu sexo” (nem ela se “rejeita” a si mesma), porque o sexo biológico não tem “papéis”. O que o(a) transexual não está seguindo, são os modelos que a sociedade criou para serem desempenhados por quem pertence a este ou aquele sexo biológico, mas que não são parte integrante do qualquer sexo ou da sua fisiologia: se devemos atentar para os aspectos “materiais” de nossa biologia, não existe nenhuma razão fisiológica para que um homem cisgênero (como eu o sou) use calças e paletó; a nossa cultura poderia ser diferente, com os homens aplicando cosméticos na face, e aí a maquilagem seria associada diretamente à masculinidade — decerto que quanto mais espalhafatosa e rebuscada, mais “poder” e “virilidade” ela representaria para o seu possuidor — enquanto a feminilidade se mostraria na expressão de uma face limpa e despojada de qualquer “elemento de força” como brincos e pinturas.
Nossa sociedade criou “papéis de gênero”, e os atribuiu compulsoriamente às pessoas, pelo fato de nascerem com esta ou aquela conformação anatômica, porém, são totalmente arbitrários, e em outra cultura, homens e mulheres poderiam se exprimir de uma forma totalmente diferente. É arbitrário que homens usem calças, e mulheres, saias.
Não decorre da fisiologia de nenhum dos sexos que as mulheres pintem o rosto, e os homens modelem a barba. Não decorre do patrimônio genético que as mulheres fiquem em casa, e os homens trabalhem, e muitas culturas mostram os papéis de gênero de forma oposta à nossa, com os homens cuidando das crianças, e as mulheres caçando e coletando.
A cor azul para os meninos, e a cor rosa, para as meninas, também é uma convenção, criada por nossa sociedade — e que sequer é tão antiga — assim como as cores cerimoniais para lutos e casamentos (japoneses se casam de preto, e vestem o branco em sinal de luto).
ASSIM, a (re)construção da própria identidade de gênero é um ato de revisão dos “papéis de gênero” impostos desde cima. Ninguém pode ser compelido a seguir uma rotina de gênero que não escolheu; no entanto, essa compulsoriedade é tão arraigada, que os insurgentes que desafiam a hegemonia são logo estigmatizados, incompreendidos, ridicularizados, e em culturas como a nossa, ainda sofrem violência, quando não são criminalizados por isso. A tônica nas culturas que impõem a uniformização dos papéis de gênero é a tautologia de que “se as pessoas não forem obrigadas, serão livres”, sendo a liberdade temida como se fosse o mesmo que o “caos”.
O “caos” está na privação de direitos e de dignidade, no tratamento igual para os desiguais (o que constitui flagrante injustiça). O nivelamento que ignora as particularidades de cada indivíduo é a verdadeira “desordem” que temos que evitar.
Uma sociedade como a nossa, que atropela as múltiplas identidades de gênero, é que constitui uma sociedade anômica e disfuncional, e não aquela que nós preconizamos, na qual ninguém é cobrado a seguir a este ou aquele “papel de gênero”, e onde todos cuidam do bem-estar social de seus membros, uns dos outros, sem julgamentos ou rotulações.
Por Eduardo Banks
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