Decisão de Toffoli sobre JeF é 'tecnicamente correta e juridicamente idônea', diz Celso de Mello

Decisão de Toffoli sobre JeF é 'tecnicamente correta e juridicamente idônea', diz Celso de Mello

Às vésperas do primeiro aniversário da tentativa de golpe de 8 de janeiro, as forças derrotadas uniram-se para atacar o Supremo Tribunal Federal. O pivô das investidas foi um despacho do ministro Dias Toffoli que suspendeu o pagamento da multa imposta pelo Ministério Público Federal à J&F em acordo de leniência. Uma ordem calcada em precedentes do colegiado foi descrita como “decisão monocrática”.

A determinação para que a Controladoria-Geral da União revisse o cálculo de uma multa desarrazoada foi descrita como anulação da penalidade. E, por fim, uma suspeição que não foi invocada sequer pelas partes foi apresentada como desvio ético.

Giovanna Bembom

Diante do pedido da revista eletrônica Consultor Jurídico por análises técnicas da decisão, alguns dos maiores especialistas brasileiros sustentaram a correção e a integridade da decisão assinada por Toffoli. No ponto mais agudo, no campo do populismo, a suspeição ou impedimento invocados tromba com o superávit de moralismo e o déficit de lógica. Em “off”, os comentários não favorecem a imprensa. Perguntas como: jornalistas não têm conflitos de interesses do mesmo teor que se cobra aos juízes?

É preciso ressaltar que, apesar de todo o escarcéu, Toffoli não atendeu ao principal pedido da J&F — para suspender os negócios jurídicos firmados pelo grupo antes do acordo de leniência. Com isso, o conglomerado não conseguiu até o momento rever a venda da Eldorado, transação que está sendo contestada há tempos.

Por verificar irregularidades na celebração do acordo, o ministro suspendeu o pagamento da multa que foi imposta à J&F para que ela pudesse continuar operando. Menciona-se o valor de R$ 10,3 bilhões, mas o próprio MPF já corrigiu erros de cálculo e baixou o valor para R$ 3,5 bilhões. A empresa informou nos autos que já pagou R$ 2,9 bilhões — o equivalente a 83% do total.

Embora ressalve não conhecer o processo, o ministro aposentado do STF Celso de Mello avalia que a decisão de Toffoli é “tecnicamente correta e juridicamente idônea”.

“Não conheço o processo! No entanto, o exame isolado da decisão do eminente ministro Dias Toffoli revela, ante os termos que lhe dão suporte legitimador, tratar-se de um ato decisório revestido de fundamentação tecnicamente correta e juridicamente idônea, assentado, ainda, quanto à sua motivação, em autorizado magistério doutrinário e em precedentes relevantes do Supremo Tribunal Federal!”, analisa Celso de Mello.

O jurista Lenio Streck destaca que as críticas veiculadas pela imprensa têm certo grau de conveniência e “espetacularidade”. Afinal, falam mais de seus efeitos e destinatários do que da própria decisão. “Muito barulho por nada, como na peça de Shakespeare”, diz.

“Explico: o ministro Toffoli foi cauteloso como um técnico de futebol com esquema tático defensivo em jogo decisivo — é preciso fechar o time quando não está bem resolvido o meio campo. Ora, a decisão tem tudo que se espera de um julgador: responsabilidade e fundamentação idônea. Ao identificar dúvida razoável sobre o requisito de voluntariedade no acordo de leniência, o ministro percebeu o que estava em jogo e, por meio de uma decisão técnica, fundamentada na jurisprudência do próprio Supremo e absolutamente sensata, determinou a suspensão do pagamento da multa e permitiu a reavaliação dos anexos do acordo, para então seguir o jogo — dentro das quatro linhas do processo e dos princípios constitucionais”.

“Além disso, as alegações de existência de impedimento ou suspeição do ministro no caso mais parecem novos acenos à torcida, seja pelo resultado do recente julgamento da ADI 5.953 — que declarou a inconstitucionalidade de norma que estabelecia o impedimento do juiz nos processos em que a parte for cliente do escritório de advocacia do cônjuge —, seja porque a cônjuge do magistrado sequer atua no caso. Aliás, considerando tratar-se de uma grande banca de advogados, validar esse raciocínio poderia até mesmo inviabilizar o trabalho do escritório perante o Supremo. Portanto, nada a objetar da decisão de Toffoli. Nem precisa chamar o VAR”, opina Lenio.

Advogado da J&F na celebração do acordo de leniência, Igor Tamasauskas já tinha afirmado, em entrevista à ConJur, que o cálculo da multa apresentado pelo MPF não estava correto desde o início, mas foi aceito pela empresa porque a alternativa era falir o grupo inteiro.

“Então, não vejo problema na decisão, sobretudo porque ele determina que se sente com a CGU para reavaliar se teve ou não problema nos casos. A decisão do ministro Toffoli tecnicamente não merece qualquer reparo. E com relação à esposa trabalhar ou não para a empresa, ela não advoga na causa, e o grupo J&F é muito grande, é natural que haja diversos advogados. Não vejo problema nessa relação”, declara Tamasauskas.

O advogado Eduardo Sanz, que atuou em diversos processos na “lava jato”, considerou a decisão “cautelosa e exauriente”, ressalvando que não acompanhou o processo inteiro da J&F. Segundo ele, a concessão de acesso ao material da spoofing, por exemplo, é medida que já tinha sido adotada em relação a outros acusados da “lava jato”, diante das graves acusações de conluio entre acusadores e juízes.

“O ministro não reconhece liminarmente o direito que precisa ser comprovado”, ele explica, se referindo ao possível dano causado pela atuação do MPF. “Mas reconhece o direito do requerente de ter acesso aos elementos de prova para comprovar o vício de sua voluntariedade. Tal direito de defesa é fundamental e recepcionado pela Constituição, sobretudo em situação em que pode haver flagrante abuso de poder”.

“Em face dessa situação, perece justo que o ministro venha a suspender obrigações pecuniárias altíssimas do acordo que pode vir a ser declarado ilegal em face do abuso de poder das autoridades públicas. Da mesma forma, parece correto que a empresa reavalie os anexos de seu acordo de leniência para com a CGU que foram decorrentes de uma possível situação de abuso de autoridade.”

Por fim, em relação às insinuações de suspeição que foram veiculadas pela mídia, ele ressalta que o pedido da J&F no processo foi assinado apenas pelo diretor jurídico da empresa. “Um grupo empresarial como J & F, acredito, deve manter relações jurídicas com os maiores escritórios do Brasil. Tal situação por si só, não é suficiente para causar suspeição ou impedimento por parte dos julgadores. Situação diferente seria se o próprio familiar assinasse a referida petição, ou, ainda, que o escritório cujo familiar fosse um sócio relevante fosse contratado para atuar especificamente nesse pedido.”

A decisão do ministro do STF reconhece a alta probabilidade de violação da boa-fé objetiva na celebração do acordo de leniência da J&F, considerando o contexto da época, com o alinhamento indevido de lavajatistas relevado pelas mensagens da vaza jato, examina o juiz de Direito de segundo grau do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Alexandre Morais da Rosa, professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

“Na ocasião, o contexto indicava a imposição de medidas cautelares agressivas (prisões cautelares; congelamento patrimonial), com riscos concretos de inviabilização da atividade comercial. O exemplo próximo da destruição da Petrobras indicava o desfecho adverso. Daí que com as novas informações, mostra-se razoável e adequado a suspensão dos termos acordados até a apuração escorreita, determinada pelo ministro Toffoli, aos órgãos de controle”.

Para Morais da Rosa, Toffoli “teve a coragem que se espera de um magistrado em democracia, ainda que contra a opinião superficial da multidão e do risco concreto de linchamento digital”. “Em uma democracia, a punição legítima é a justa. A decisão apenas busca definir os critérios objetivos, no que serve de realinhamento democrático quanto aos abusos já constatados. Ademais, nenhum dos legitimados à oposição de suspeição ou impedimento se movimentou, aceitando, com a omissão, a integridade do julgador. Até porque presentes.”

Nessa mesma linha, o criminalista Fernando Hargreaves entende que não há que se cogitar de impedimento ou suspeição de Toffoli no caso.

“A norma que estabeleceria o impedimento do juiz nos processos em que a parte for cliente do escritório de advocacia do cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo foi declarada inconstitucional pelo STF no julgamento da ADI 5.953. Portanto, não existia impedimento algum do ministro Toffoli apenas pelo fato de sua esposa ser advogada do conglomerado J&F. No sistema processual civil brasileiro, o impedimento do juiz por parentesco se dá apenas na hipótese de eventual relação com a parte, não com o seu advogado”.

Por sua vez, a constitucionalista Vera Chemim aponta que a decisão do ministro atende aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Isso diante dos fatos apresentados pela J&F, da doutrina e dos precedentes do Supremo. Ela pondera, no entanto, que a decisão poderia ter sido tomada após a volta da Corte ao trabalho, para evitar as críticas ao fato de o caso ter sido julgado no recesso judicial.

Já a criminalista Cecilia Mello, desembargadora federal e procuradora aposentada, afirma que o despacho do ministro é “bastante cauteloso, direto e objetivo do ponto de vista jurídico”.

“Na Reclamação 43.007, o ministro havia reconhecido — de forma erga omnes — a ilicitude dos abusos cometidos pela chamada operação ‘lava jato’, invalidando colaborações premiadas e suspendendo a leniência da Odebrecht (hoje Novonor). Em decorrência, já havia viabilizado o acesso, pelos diretamente interessados, ao material da spoofing. A J&F, na condição de vítima dos abusos da ‘lava jato’, requereu a extensão dessa decisão para que lhe fosse possibilitado o acesso ao material da “spoofing”, a fim de verificar a amplitude das ilegalidades perpetradas e seus reflexos na leniência da companhia. O ministro Toffoli verificou haver aderência estrita do pedido da J&F com a decisão anteriormente exarada e deferiu parcialmente a liminar exclusivamente para esse fim. Reitere-se: para a avaliação da licitude das provas que lastrearam o acordo de leniência da companhia, com suspensão das obrigações financeiras durante esse período”.

Cecilia Mello ainda destaca que Toffoli não era suspeito ou impedido de julgar o caso. “Suposições sobre a participação de Roberta Rangel, mulher do ministro, em ação da Eldorado, não guardam relação com o caso e foram esvaziadas na medida que o pedido liminar, que tangenciava a Eldorado, foi negado.”

O advogado Georges Abboud, professor de Direito Constitucional do IDP e de Direito Processual Civil da PUC-SP, opina que Toffoli não concedeu nenhum “privilégio” à J&F. “Conforme se depreende, as informações constantes da reclamação originária (43.007) foram franqueadas diversas vezes a outros interessados. Ao que tudo indica, procurou-se garantir a isonomia em relação àquilo que já havia sido anteriormente reconhecido em relação à Odebrecht”.

A decisão do ministro, diz Abboud, tampouco “invalidou” o acordo de leniência, apenas garantiu à J&F o acesso a todas as informações adequadas para que ela possa rever aspectos de seu acordo de leniência que eram abusivos. “Depreende-se da decisão que o instituto do acordo de leniência pressupõe uma declaração livre de vontade, que havia sido cerceada por aquilo que se revelou um projeto de poder da ‘lava jato'”.

“Portanto, a decisão, por isonomia, estendeu à J&F as mesmas condições que foram determinadas para outras companhias. O pedido de extensão e sua respectiva análise monocrática estão sedimentados na jurisprudência do STF — em especial, em HC e reclamação —, o que evidencia a covardia e o despreparo de diversos setores da mídia que, a pretexto de criticarem, na verdade atacaram o ministro relator, de forma, inclusive, muito sórdida, fazendo o ataque contra seus familiares”, destaca Abboud.

Fonte: Consultor Jurídico

Por Jornal da República em 28/12/2023
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