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No ano passado publiquei na PLURA: revista de estudos de religião, um artigo onde eu falei sobre a maneira como o biólogo e divulgador científico inglês Richard Dawkins (1941) abordou nas últimas décadas o tema da religião e do ateísmo nos livros que escreveu.
Agora, quando se completam 15 anos da publicação de uma de suas obras mais famosas e polêmicas, Deus, um delírio, gostaria de retomar o tema abordado naquele artigo da PLURA, intitulado Richard Dawkins: neodarwinismo, ateísmo e religião (1976-2006).
O livro Deus, um delírio, apareceu no início de outubro de 2006, tornando-se um best-seller no mercado editorial. Ficou por semanas na lista dos mais vendidos do New York Times e no site de vendas Amazon. Além disso, ganhou traduções e foi publicada em diversos países, com uma edição brasileira já em 2007.
O autor, Richard Dawkins, é figura de renome na área das ciências naturais e divulgação científica por meio de obras como O gene egoísta (1976), O fenótipo estendido (1982), O relojoeiro cego (1986), O rio que saía do éden (1995), Desvendando o arco-íris (1998), e O capelão do diabo (2003).
Deus, um delírio significou uma mudança na visão do público sobre Richard Dawkins como divulgador de ciência, ao vê-lo fundir a figura do cientista com a do militante ateu.
De modo mais abrangente, o livro expressou uma crítica às tentativas de implantação do ensino do design inteligente nas escolas públicas, um movimento perceptível nos EUA a partir da década de 1990, e a ameaça que o fundamentalismo religioso representaria para as sociedades seculares e laicas do Ocidente após os atentados de 11/09/2001, quando terroristas jogaram aviões contra as Torres Gêmeas, em Nova York, e contra o Pentágono, em Washington, usando a religião islâmica como justificativa.
A obra apresenta uma explícita mensagem de crítica a ideia de Deus. Mas, apesar do livro se criticar à existência de qualquer deidade sobrenatural, o Deus ao qual se refere o título da obra de Richard Dawkins é de modo particular o das religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo, islamismo). Richard Dawkins define esse Deus como uma inteligência sobre-humana e sobrenatural que teria projetado e criado deliberadamente o universo e tudo o que há nele.
Contudo, do ponto de vista das ciências naturais, seria improvável a existência de tal entidade, uma vez que qualquer inteligência criativa, de complexidade suficiente para projetar qualquer coisa, só existiria como produto final de um processo extenso de evolução gradativa. Inteligências criativas, por terem evoluído, necessariamente chegariam mais tarde ao universo e, portanto, não poderiam ser responsáveis por projetá-lo. Por isso, na ótica de R. Dawkins, por definição Deus seria um delírio.
Mas Richard Dawkins não apenas analisou o Deus abraâmico de um ponto de vista científico como fez severas críticas a maneira como ele apareceu nos textos religiosos. Ele afirmou que o Antigo Testamento seria expressão do judaísmo, um culto de origem tribal a um Deus único que tinha uma obsessão mórbida por restrições sexuais, cheiro de carne queimada e superioridade em relação aos deuses rivais.
O cristianismo foi fundado por Paulo de Tarso no século I a partir de uma seita judaica, a dos seguidores de Jesus, o qual ofereceu o Deus judaico como o único Deus verdadeiro para toda humanidade. Mais tarde, foi fundado o islamismo, retomando o monoteísmo inflexível do original judaico.
A cosmovisão monoteísta das religiões abraâmicas, baseado na ideia de um único Deus portador da verdade válida, acrescido do ideal evangelizador de impô-la a todos os povos sem permitir conhecimentos alternativos, seria um dos traços mais prejudiciais ao livre pensamento. A partir desse raciocínio é que Richard Dawkins defendeu o ateísmo, o qual entendeu como uma postura intelectual autônoma perante qualquer ideia de ortodoxia.
Deus, um delírio gerou um debate intenso ao ser publicado. Algumas das manifestações foram elogiosas. O biólogo molecular James D. Watson afirmou que a irracionalidade religiosa muitas vezes apresenta sérios obstáculos ao aperfeiçoamento humano. E Richard Dawkins oferecia um contraponto a isso.
O psicólogo Steven Pinker declarou que Deus, um delírio desmentia os chavões preguiçosos e calmantes que as pessoas adotam para escapar da responsabilidade de pensar seriamente sobre a crença religiosa.
Contudo, a obra foi igualmente alvo de severas críticas. O casal de apologistas cristãos Alister e Joanna McGrath disseram que Richard Dawkins, reconhecido divulgador da ciência, a deixou de lado em Deus, um delírio, livro onde havia muita especulação pseudocientífica associada a críticas culturais mais amplas sobre a religião, a maioria das vezes emprestada de antigos escritores ateus.
O filósofo marxista britânico Terry Eagleton frisou o que seria um dos principais problemas dessa obra de Richard Dawkins: a carência de conhecimento teológico, associado à ideia de que a ciência pode dar respostas para todas as dúvidas humanas, inclusive tratando Deus como hipótese científica.
Richard Dawkins, que em março desse ano completou 80 anos, é figura incontornável no ateísmo contemporâneo. Ainda que muitas ressalvas possam ser feitas a ele, como querer equiparar teologia e ciência para refutar a primeira a partir da segunda, é preciso reconhecer como válida sua tentativa de pensar o impacto histórico, social, cultural e político das religiões e da crença em Deus na vida das pessoas.
É preciso deixar de lado o antigo ditado que diz que “religião não se discute” caso queiramos ter uma reflexão mais acurada sobre a sociedade na qual vivemos. Prova disso é o governo Bolsonaro.
Por Ricardo Oliveira da Silva
Doutor em História pela UFRGS e docente do Curso de História da UFMS/CPNA