Assine nossa newsletter e fique por dentro de tudo que rola na sua região.
Oferendas alimentícias como farinha, alguns tipos de raízes, plantas, além de aves, cigarros e bebidas, geralmente apresentados sobre pratos de barro - os alguidares - fazem parte da ritualística das religiões de matriz africana. Contudo, estes elementos que se referem diretamente ao sagrado para os fiéis de religiões de matrizes africanas como a Umbanda e o Candomblé ainda são alvos de intolerância religiosa.
De acordo com o último censo do IBGE, quase 600 mil pessoas professam seguir religiões de matriz africana no Brasil – 407 mil praticantes de umbanda, 167 mil do candomblé e 14 mil de outras correntes. Ainda assim, estes cidadãos enfrentam tabus provenientes da intolerância, inclusive na hora de descartar seus resíduos de culto.
No mês passado, frequentadores do terreiro Ilè Ayrá Túndé, em São Gonçalo, denunciaram nas redes sociais que a companhia de limpeza urbana vinha ignorando o lixo produzido pelo templo, por semanas, recolhendo apenas os descartes das outras casas da calçada.
Para os frequentadores do terreiro, essa ação foi na intenção de discriminar o culto e essa casa, já que os responsáveis pela coleta acreditavam que o lixo continha restos de oferendas. “Por outro lado, é muito importante que pensemos sobre essa questão do descarte dos restos das oferendas de maneira séria e responsável. Saber o que vai ou não para o lixo é uma reflexão necessária para nós que nos identificamos como um culto à natureza. Ainda assim, os serviços de coleta de lixo não podem negar de forma alguma a coleta de lixo de um terreiro, seja resultante de restos de oferendas ou não, desde que estejam apropriadamente nas suas latas, como foi o caso desse terreiro em São Gonçalo, que de forma justa, cobra uma solução”, comenta o Babalorixá Vitor Friary.
O caso levanta questões importantes como o combate à intolerância religiosa e abre o debate sobre responsabilidade ambiental coletiva na destinação do lixo. “Nos versos de Ifá (divindade conselheira e detentora de toda sabedoria), particularmente no Odu Okaran Obara, encontramos mensagens sobre a importância das lixeiras como pontos de força no trabalho espiritual. Esses versos ensinam que a questão sanitária também é tratada nos ensinamentos orais de cultos africanos, assim como tantas outras orientações sobre saúde física, e que portanto não são ignoradas. Como devotos da natureza, precisamos trabalhar não apenas 'com' a natureza, mas também 'para' a natureza”, pontua o Babalorixá Vitor Friary.
O problema do lixo no Estado não conhece fronteira de credo ou município
Entre 2010 e 2022, a geração diária de lixo no estado passou de cerca de 16.970 toneladas para 17.333 toneladas, um crescimento de 2,14%, de acordo com as estatísticas do Plano Estadual de Resíduos Sólidos do Estado do Rio de Janeiro (PERS). Deste total, 40% dos resíduos são de materiais recicláveis, dos quais 16% são papel ou papelão; 17,8%, plástico; 3,3%, vidro; e 2,9%, metal.
Para além da própria coleta de lixo, o Babalorixá Vitor Friary, acredita que os terreiros podem ser verdadeiros agentes na conscientização do problema do lixo em maior escala. “Em termos práticos, inseridos na nossa sociedade contemporânea, como praticantes do candomblé, precisamos refletir e reavaliar práticas rituais em um mundo cada vez mais consciente dos impactos humanos sobre a natureza. Os terreiros não podem ficar de fora dessa reflexão e da tomada de decisões sobre o assunto”, pontua o sacerdote.
Ainda de acordo com Friary, a consciência ambiental e o esforço pela preservação do meio ambiente deve ser um trabalho cotidiano realizado em comunidade. Para o religioso, a consciência a respeito dos tipos de materiais presentes nas oferendas, e consequentemente a destinação destes itens, após a realização dos rituais deve começar por parte dos adeptos.
“No último final de semana, durante uma viagem pela região dos Lagos, em Maricá, me deparei com uma oferenda inusitada. Ali, repousava um alguidar contendo elementos de axé como farinha, inhame e, para minha surpresa, três garrafas de cerveja. Como Babalorixá, essa visão me suscitou muitas reflexões. O que será que a pessoa que deixou essa oferenda acredita que acontecerá com esses elementos e materiais após arriá-los ali? Será que os devotos do candomblé, da umbanda e dos cultos tradicionais africanos compreendem claramente o destino dos alimentos e oferendas após serem entregues aos pés dos Orixás?”
Segundo o sacerdote, “A melhor forma de combater a intolerância religiosa, bem como o descaso com a natureza é a informação e conscientização, e nisto os terreiros precisam ser agentes”, complementa Friary.
Nenhum comentário. Seja o primeiro a comentar!