E se Jair fosse Jaíra?

E se Jair fosse Jaíra?

Colunista do jornal O Globo, veículo que pertence ao grupo de comunicação que liderou o golpe de Estado alicerçado na misoginia contra a Presidenta Dilma Rousseff, publica artigo que toca em um dos pontos nevrálgicos da sociedade brasileira: o machismo, a misoginia e a incapacidade de reflexão autocrítica dos principais atores políticos, intelectuais e instituições. O resultado está aí.

Por Martha Batalha - É um exercício interessante: imaginar que Jair é Jaíra. Cabelo armado e com luzes, olhos claros, a pele branca o suficiente para considerar-se pura de raça. Jaíra num tailleur tom pastel, querendo muito ser ditadora, mas tendo que se dirigir ao povo depois do fiasco do 7 de Setembro, para dizer: “Minhas palavras, por vezes contundentes, decorrem do calor do momento.”

O que o povo brasileiro diria?

Menopausa. É o que dá, botar mulher para dirigir o país.

Imagine se Jaíra poderia dizer: “Eu tive quatro mulheres. Na quinta, o esperma fraquejou e saiu um menino.” Se ela usaria um pronunciamento em cadeia nacional para falar com orgulho da filha caçula: “Ela pegava todo mundo no condomínio”. E qual seria a reação dos brasileiros se, num áudio vazado de uma reunião ministerial, eles ouvissem uma líder mulher dizer tantos c%*#alhos, px?*#rras e mer%&das? Qual o tamanho da ferida no moralismo brasileiro, se fosse uma Jaíra a constranger o presidente de Portugal com piadas de baixo calão?

Teria ela a mesma influência sobre os caminhoneiros? Seriam eles leais a Jaíra, quem sabe num estilo Evandro Mesquita, faróis baixos, para-choque duro?

Desconfio que no caso de Jaíra os pedidos de impeachment estariam fora da gaveta, deputados de direita e esquerda certos de que a presidente não estava apta para governar o país, e o tchau querida teria sido proferido há tempos pela oposição.

Jaíra não duraria três anos, Jaíra não poderia ser tão incompetente quanto Jair. Ela jamais poderia se dirigir ao povo ou ao seus pares aos berros e palavrões, não seria agraciada com a mesma tolerância que é dada a um Jair. Imagino o tamanho da raiva, se fosse uma mulher responsável por diminuir o PIB, aumentar a inflação, fazer o dólar extrapolar 5 reais e a gasolina passar dos 7, estar envolvida no esquema de propina de vacinas e na morte de quase 600 mil brasileiros. Mesmo se fosse fascista, racista, machista e corrupta, ela jamais poderia ser tão inepta e mal-educada quanto Jair. Ela não ficaria.

A senadora Kátia Abreu, num momento de estranha inspiração, pediu gravatas de presente aos colegas de Senado, e mandou fazer com elas uma saia pavorosa, capaz de descolar a retina da Glorinha Kalil. Penso nela de vez em quando (e quando penso, desejo que a senadora tenha ao menos lavado as gravatas antes de tal customização) e tenho dúvidas se a ideia é genial ou horripilante, ou os dois. Eu me pergunto se ela fez a saia para contar com a aprovação dos colegas, o modelo como símbolo de submissão e usada por submissão, ou se fez para, diante da aprovação dos pares, plantar uma distração subconsciente, a ilusão da subserviência, para assim avançar as próprias pautas.

No Brasil, há muitas Kátias e nenhuma Jaíra, porque o tipo de sociedade que viabiliza um Jair é o mesmo que inviabiliza mulheres de agirem como ele, restando a elas o querer pouco ou o agir calculado, a manipulação do outro, vulnerável pela vaidade e pela urgência em parecer superior. Não está dando muito certo, parece. Já faz uns 500 anos que parece que não dá certo.

 

 

Por Jornal da República em 15/09/2021
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