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Próximo da minha casa existem duas redes internacionais de fast food. No final de semana passada, fui comprar um sorvete numa dessas lojas e me deparei com a quantidade de motofretistas amontoados no meio-fio da calçada. Enquanto aguardava meu sundae puxei assunto com um deles e perguntei despretensiosamente: irmão, quantas entregas você faz por dia para os clientes desta rede de fast food? Ele, muito convicto, me respondeu ao seu modo, dizendo que os clientes eram dele e não da loja, pois ele era o empreendedor que conectava dois clientes que dependiam dele. Confesso que fiquei de queixo caído com a resposta pragmaticamente determinada, afinal de contas, ele se enxergava um empreendedor e não um trabalhador. Será que o fato de a moto ser dele, abastecida por ele, aliado ao caso de não ter carteira assinada e carga horária fixa o faz se ver empreendedor?
De fato, foi de cair o queixo perceber que existe uma narrativa altamente penetrante, que afeta o trabalhador em situação de subemprego, transformando-o em empreendedor de si próprio, sujeito do desempenho, o homem batalhador. É por esse motivo que as desigualdades sociais e as inúmeras propostas de inclusão estão no cerne dos choques políticos e sociais desde os tempos mais remotos. É claro que nosso objetivo aqui não é construir binômios que ilustrem formulações cômicas, entretanto, desde os primórdios, o debate central sobre este tema se constrói classicamente entre a posição liberal de direita e a esquerda. A primeira sustenta a formulação de que a iniciativa individual, aliada a não regulamentação do mercado, compõe em longo prazo a melhora significativa da renda e das condições de vida das pessoas. A de esquerda dialoga que as transformações sociais se darão a partir das lutas sociais e de pressões políticas, e que somente assim seria possível mitigar a pobreza, as desigualdades sociais e a miséria.
Nos dias atuais, no mundo, os ricos ficam com 99% das riquezas produzidas, enquanto os pobres apenas com 1%. A pobreza, a miséria e a profunda desigualdade social não são um bom negócio. É preciso conferir universalidade de acesso a direitos, sendo o horizonte possível a construção de um estado de bem-estar social.
Há muito tempo, as necessidades humanas deixaram de determinar a produção, o consumo assumiu esse protagonismo. Portanto, sugerir o empreendedorismo como solução para aliviar a ausência de uma política pública de proteção social é má-fé institucional. Ainda nos dias de hoje, se faz necessário reforçar que a pobreza não pode ser tratada de maneira isolada. É uma demanda estrutural que deve ser dirigida socialmente a partir da representatividade, complexidade e heterogeneidade da sociedade pós-política de seus números.
Hoje, trabalhadores autônomos ou informais e pequenas empresas representam uma significativa parcela no tabuleiro da economia. Por esse motivo, aos poucos, as políticas públicas iniciam e direcionam seu olhar para o financiamento dessas atividades. Contudo, infelizmente, as rendas ou receitas oriundas dessas atividades laborativas ainda não são suficientes a ponto de gerar alguma reversão no contexto de desigualdade, porque são trabalhos precários.
De todo e qualquer modo, empreender abrange riscos e o exercício de sua atividade envolve altos índices de letalidade. O SEBRAE apontava em 2017, portanto bem antes da pandemia, que era de 23,4% a taxa de mortalidade dos novos negócios (até dois anos) no Brasil. Logo, se levarmos em conta o desejo e a motivação do público ao empreender, abordado aqui, enquadraremos a classificação de empreendedorismo “por necessidade”. Essa categorização ocorre quando o empreendedor se depara com dificuldades de se inserir no mercado, pois na verdade, ele empreende na fé e esperança de um futuro com retorno econômico mais atraente e, na imensa maioria das situações, o ato de empreender por necessidade resulta em empreendimentos pequenos, de baixa potência para geração de empregos ou até mesmo para subsistência de sua família.
Nesse sentido, por suspeição, a utilização do empreendedorismo como política de construção da autonomia com vistas à emancipação social da população de baixa renda, vulnerável, desempregada e exposta ao risco social e pessoal seja praticamente desconsiderada. Todavia, muitos fatores arremessam pessoas de baixa renda para o “empreendedorismo” sob a forma de trabalho informal ou subempregos. A pandemia é um exemplo atual.
Por isso, o investimento social não pode ser abordado como fardo fiscal, suportado por alguns para atenuar as vulnerabilidades sociais “dos outros”. Pois, no final das contas, depositar sobre os ombros dos mais pobres a responsabilidade objetiva de sair da condição que se insere é um mecanismo de má-fé institucional. Por consequência, existe uma falácia em torno da tecnocracia e meritocracia, como bem afirma o professor Boaventura: “autonomia sem condições de autonomia é precariedade”. Por essa razão, que devemos questionar a glamourização ou romantização da palavra empreendedorismo, que fora muito bem construída pelo neoliberalismo.
Allan Borges é Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV .
Foto: Reprodução/Marcello Casal/Agência Brasil.
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