Enganar facilita as coisas?

Se enganar é tão essencial para a segurança, desde os primórdios, isso caracteriza uma contradição ética que talvez fique sem solução até o fim dos tempos.

Enganar facilita as coisas?

** Por Walter Felix Cardoso Júnior - wfelixcjr@gmail.com

A realidade do campo de batalha é extremamente brutal e perigosa, onde forças se digladiam para conquistar território, controlar recursos, e proteger populações e interesses. Nas guerras, os soldados, e os civis pegos no meio desses combates, podem levar tiros e serem explodidos por mísseis, além de sofrerem com gases mortíferos, radiação, minas e ataques aéreos, entre outras ocorrências fatais. Essas pessoas experimentam traumas físicos e emocionais inclusive pela perda de companheiros e parentes. A dinâmica do campo de batalha costuma mudar rapidamente e é preciso estar sempre alerta e pronto para se adaptar às mudanças ao redor. Em resumo, a realidade de um campo de batalha é extremamente desafiadora e dolorosa. Contudo, como não existe limites para o pior, quando a informação passa a ser utilizada como arma - a desinformação - a realidade dos confrontos se torna ainda mais pavorosa.

Ocorre que de décadas para cá o fenômeno da guerra migrou da dimensão militar, com seus campos de batalha convencionais, para outras expressões do poder, a econômica, a científico-tecnológica, e a cultural-social. Qualquer arena cruenta do dia a dia pode se transformar em “singelo campinho de batalha”, do doméstico ao de “briga de rua”, quando se podem usar todos os artifícios ao alcance. Enfim, a desinformação é o nome técnico que se dá à “arte” de enganar para alcançar um efeito determinado, seja ocultando ou distorcendo fatos e induzindo gente a erro de julgamento. Em sentido amplo, ludibriar faz parte da rotina de muitas pessoas, que se valem de pretextos diversos para tapear em benefício de interesses inconfessáveis. Tem gente que diz, hipocritamente, que se não tivéssemos alguma coisa para simular ou dissimular, a vida, como a conhecemos, se tornaria inviável.

A desinformação é também a informação transformada em munição virtual para afetar as mentes dos inimigos e, também, de eleitores numa campanha. Ela pode ser usada como parte de táticas regionais ou mesmo em grandes estratégias do confronto global, para condicionar a opinião pública, seja pela Internet ou quaisquer outros meios de disseminação, minando a confiança de consumidores e simples combatentes, para afetar significativamente decisões políticas e militares. A disseminação de informações falsas, Fake News, propaganda enganosa e notícias tendenciosas, acaba por confundir e distrair os atores envolvidos, podendo criar divisões em qualquer organização. Com efeito, a desinformação é aplicada para distrair a atenção, enquanto movimentos contrários aos interesses das pessoas acontecem sem ser percebidos. Ela minar a confiança nas lideranças, espalhando rumores falsos e criando pânico e desconfiança nas capacidades. Em resumo, a desinformação é um recurso cruel, mas eficaz do campo de batalha da atualidade. Por isso, é importante que militares e civis trabalhem juntos defendendo-se dessa ameaça.

Embora a desinformação seja, sob quaisquer circunstâncias, antiética e de resultados incertos, as chances de sucesso aumentam se aplicados princípios e técnicas que lhes são próprias. Por ser uma atividade controversa, eu não vou explicar aqui como se produz uma peça de desinformação. É penoso ludibriar muita gente ao mesmo tempo e eu lhes recomendo procurar ensinamentos dessas práticas nos livros. Tem êxitos famosos de desinformação, como a absolutamente real e bem-sucedida Operação Mincemeat, narrada no best-seller de Ewen Montagu - O Homem Que Nunca Existiu (BIBLIEX - 1978) - em que os aliados lograram enganar ao alto-comando alemão quanto ao verdadeiro local do desembarque das tropas aliadas na Europa, fato que teve grande reflexo no desenrolar do restante da II Guerra Mundial (1939 – 1945) no teatro de operações ocidental. Como bônus aos que leram até aqui, apresento de forma sintética o caso fantástico de uma operação de desinformação ocorrido na guerra árabe-israelense de 1973.

 

A Guerra do YOM KIPPUR

O ataque árabe na frente egípcia, sob a estória-cobertura de mais um presumível “exercício militar”, provavelmente constituiu o ardil mais óbvio e bem-sucedido do plano árabe de guerra. Os principais órgãos de inteligência israelenses atribuíram a esse presumível exercício a maior parte dos indícios de ofensiva iminente verificados nas linhas egípcias, antes do dia 6 de outubro de 1973. Esses exercícios reais haviam sido repetidos em abril e maio daquele ano, bem como no anterior, circunstância que estimulou a adequada desatenção israelense em outubro. A escolha dos dias santificados de YOM KIPPUR e RAMADAN - judeu e árabe, respectivamente - como data oportuna para o início das hostilidades, proporcionou a cobertura adicional.

Durante os seis meses anteriores à guerra, houve uma centralização dos planos estratégicos de dissimulação no Ministério da Guerra Egípcio. Os egípcios basearam os seus trabalhos de desinformação em numerosos estudos que haviam procedido sobre o pensamento e a doutrina israelenses. Valeram-se da excessiva autoconfiança judia, sua fé na sempre crescente defasagem cultural e tecnológica entre Israel e os países árabes e sua convicção na incapacidade da liderança árabe de tomar a decisão de atacar, sem mencionar a falta de unidade do mundo árabe. Por meses a fio, os árabes fizeram todo o possível para acentuar, aos olhos dos israelenses, a veracidade de suas convicções.

Desde o final da Guerra dos Seis Dias (1967), a mídia internacional fazia referência a qualquer estremecimento, real ou fictício, nas relações egípcio-soviéticas. As semanas que antecederam o conflito de 1973 não foram exceção. Mesmo a 6 de outubro, os relatórios da inteligência israelense registraram essa "animosidade" como sendo a principal causa responsável pela evacuação dos dependentes dos assessores soviéticos da Síria e do Egito. A retórica política do Presidente Egípcio, Anwar Sadat, imediatamente antes do ataque, foi caracteristicamente ambígua, mas o seu pronunciamento de 2 de setembro, perante a conferência dos Países Não Alinhados, advogou uma solução pacífica para a crise no Oriente Médio. Observe-se o contraste entre tal postura e a maciça ofensiva desfechada pelos árabes quatro dias mais tarde.

Outro aspecto deveras interessante das atividades árabes, no limiar da ofensiva de 6 de outubro, foi o seqüestro de três judeus soviéticos na Áustria, em 28 de setembro de 1973. O consentimento austríaco em fechar um centro de triagem de imigrantes judeus em troca dos reféns desencadeou uma torrente de cobertura jornalística em todo o mundo, o que fez com que a Primeira-Ministra de Israel, Golda Meir, viajasse para aquele País, onde ficou retida em negociações até 4 de outubro, dois dias antes de ocorrer o ataque árabe. O plano de desinformação tão bem concebido pelos egípcios fora elaborado com o auxílio de especialistas soviéticos, para ludibriar, não só os contendores israelenses, mas, também, os norte-americanos. Na prática, a operação desinformou aleatoriamente, inclusive as próprias forças armadas egípcias. Em um inquérito procedido com os primeiros oito mil soldados aprisionados pelos israelenses, verificou-se que apenas um sabia, em 3 de outubro, que os preparativos eram mesmo para a guerra. Noventa e cinco por cento deles só obtiveram tais informações na manhã de 6 de outubro. Dos dezoito coronéis em poder dos israelenses, cinco tinham conhecimento, em 4 de outubro, de que haveria a guerra. Os treze restantes, somente foram informados na manhã do próprio dia. Um dos coronéis descreveu como, às 14 horas do dia 6, quando observava os aviões egípcios sobrevoarem o QG do 3o Exército de Campanha, em direção às linhas israelenses, voltara-se para o seu comandante imediato e perguntara: “Para que isso tudo?”. Obteve apenas como resposta: “Pergunte ao General.” Voltou-se, então, para o local em que esse oficial se encontrava e viu-o de joelhos, orando prostrado em direção a Meca. Essa foi a primeira indicação que teve da guerra.

Em síntese, durante os preparativos para o ataque, havia numerosos indicadores que poderiam ter dado margem a maiores preocupações por parte dos israelenses, mas estavam mascarados, talvez em dobro, por outros que indicavam não haver motivos para alarme. As rotinas diárias no lado egípcio continuavam inalteradas. Os soldados continuavam a pescar e a vagar sem seus capacetes, ao longo do Canal de Suez, como se nada de diferente estivesse ocorrendo. Em muitos casos, o material produzido pela inteligência israelense descia a detalhes dos acontecimentos prestes a acontecer. Contudo, como fora previsto pelos egípcios, quando os fatos realmente aconteceram, foram ignorados.

 

* Doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina; graduado na Academia Militar das Agulhas Negras, ex-Comandante do 63 Batalhão de Infantaria, em Florianópolis; Egresso do Centro Hemisférico de Estudos de Defesa, em Washington/USA; diplomado em Gestão de Recursos de Defesa pela Escola Superior de Guerra; ex-Diretor do Departamento de Defesa e Segurança da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo; e ex-Secretário de Planejamento Estratégico da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República do Brasil. Publicou três obras de Inteligência Competitiva, uma delas na Argentina.

 

 

Por Jornal da República em 03/04/2023
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