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Do The Intercept - A caridade é um ato voluntário e desinteressado, um socorro a uma pessoa ou coletividade em situação vulnerável. Bem, pelo menos a princípio. Há muito, e eu sei que você sabe, a caridade também é falseada e transformada em um excelente negócio: ela capitaliza político, apresentador de TV, policial, pastor, padre, socialite, youtuber, etc.
Entre esses iluminados à luz de led e WhatsApp, o truque fundamental é jogar o jogo do contrário: eles surgem amparando pessoas em situação de penúria, doam objetos, comida, tempo e mesmo dinheiro. A ação “do bem” é fartamente publicizada e logo pipocam as exclamações: “coração maravilhoso!”, “Deus te abençoe!”, “herói!” etc. É aí que o jogo se completa: logo, são “os necessitados” que estão ajudando muita gente a conseguir aplauso, engajamento, selo de bom-mocismo e dinheiro no bolso.
O caso mais recente e rumoroso é o do vereador do Rio de Janeiro e ex-PM Gabriel Monteiro, cujo amor pelas exclamações, aliás, só é menor que seu gosto pela autopromoção às custas de gente muito pobre. “Grávida não sabe se o bebê está respirando! tentamos fazer de tudo!”; “Pai larga criança, fomos salvar! eu chorei!”; “Tente não chorar! crianças sem nada!”; “Virei mendigo por um dia e chorei!” são alguns dos títulos lacrimosos dos seus vídeos no YouTube, plataforma que, consequentemente, também se monetiza com a mesma exploração de gente vulnerável (aqui com destaque, como se vê, para crianças).
Uma reportagem exibida pelo Fantástico mostrou há poucos dias o modus operandi do vereador (sem partido): combinar, com pessoas de vidas já bastante roídas, ações e falas que o privilegiam e mostram sua suposta bondade ou heroísmo. Em mais de 20 anos trabalhando como repórter, já vi muita exploração da pobreza, incluindo políticos tirarem – literalmente – leite de criancinha no interior nordestino, a exemplo de Brás José Nemézio Silva e Claudiano Ferreira Martins, ex-prefeitos da cidade de Itaíba, agreste de Pernambuco.
Ambos foram condenados em 2014 pela Justiça Federal por fraudes praticadas entre 2001 e 2004. Elas envolviam recursos que deveriam ter sido empregados em programas como Alimentação Escolar, Educação de Jovens e Adultos, Fazendo Escola/Brasil Escolarizado, Toda Criança na Escola e Transporte Escolar.
Estive na cidade há quase 10 anos e nunca esqueci o nível de corrupção e desumanidade ali naturalizados, com destaque para dinheiro federal desviado para construção de uma cozinha na casa de um ex-prefeito. Ali, ele distribuía comida, usando dinheiro público, como se fosse um ato de caridade seu. E ainda chamava presidentes e ministros de ladrões.
No entanto, preciso reconhecer que o nível de oportunismo e desumanização expostos pela equipe que trabalhava com Monteiro e era responsável pela captação e edição de seus vídeos me impactou não exatamente pela altíssima baixeza do rapaz, mas principalmente por estarmos diante de algo novo: a exploração midiatizada, através das redes sociais, de pessoas que servem não só para oportunistas ocuparem cargos eletivos, mas para transformá-los antes de tudo em celebridades.
Ambos os lugares são políticos, mas o poder do último consegue ultrapassar, em dinheiro, respaldo público e engajamento, o primeiro. Na verdade, nesse espaço borrado, Monteiro é a prova de um momento em que os gabinetes e casas legislativas são quase virtualmente dispensáveis, uma vez que a “nova” política se faz no ao vivo e no streaming, e um videomaker é mais precioso que um projeto de lei. Mais: um momento em que se é quase moralmente condenável ser político, ser famoso é visto como característica divina.
É nesse contexto que a “caridade” é transformada mais do que nunca em espetáculo, uma prova de caráter que deve ser usada para se distinguir do tal “sistema”. Dois fatores hoje a inflam ainda mais: o triste cenário de aumento da pobreza e da fome no Brasil e a proximidade das eleições em outubro. É o que explica, por exemplo, a publicização de 336 cestas básicas para a pequena Mulungu, no interior da Paraíba, com quase 10 mil habitantes.
O prefeito do município, Melquíades Nascimento, do PTB, fez um vídeo agradecendo a “bondade” de Jair Messias Bolsonaro pelo envio das doações para beneficiar “as famílias carentes”. No entanto, segundo relatório do governo federal, apenas 53 delas recebiam, em 2020, o Bolsa Família na cidade, uma das impactadas pelo corte drástico que o mesmo governo federal realizou do programa (substituído pelo Auxílio Brasil) especialmente na Região Nordeste.
Entre os meses de dezembro de 2020 e fevereiro de 2021, 48.116 famílias foram limadas do programa. Nas outras quatro regiões do país, no entanto, o programa teve a inclusão de 39.059 famílias. Era uma clara punição de Bolsonaro aos governos nordestinos pelo consórcio criado para estabelecer medidas de combate à covid-19, não importando se esse ataque ferisse diretamente o prato e a vida de milhões de pessoas já sofrendo com a pandemia. O negócio foi tão escancarado que o STF mandou suspender os cortes.
Vai ser caridoso assim com Fabrício Queiroz, presidente.
A caridade interessada é uma questão já antiga no Brasil, mas que a rápida ascensão de heróis de ocasião através das redes ajuda a embaralhar ainda mais: enquanto políticas públicas que podem de fato promover avanços estruturais são desmontadas, os atos “caridosos” se multiplicam, impedindo o avanço de uma real cidadania. Assim, com o aval de boa parte da sociedade que vê na solidariedade uma solução para os problemas, consegue-se manter as coisas como elas estão. Isso porque, como escrevem Luciane Lucas e Tânia Hoff, da Pós-Graduação em Comunicação da ESPM de São Paulo, no artigo “A face oculta da caridade: linhas de força e de fratura no discurso midiático do bem”, o ato de doar estabelece uma relação desigual sempre que aquele que oferece considera que o receptor não tem nada a dar em troca.
Assim, doar implica uma relação paradoxal na qual se estabelecem dois tipos de vínculo: um calcado na solidariedade, mas, também, em uma relação de superioridade que consolida a dependência. Esta última estava evidente, por exemplo, em outro rumoroso caso, o do quiosque “doado” como prêmio de consolação para a família do congolês Moïse Kabagambe, linchado no fim de janeiro na Barra da Tijuca. Dias depois, a família desistiu de assumir o gerenciamento do negócio por motivos óbvios: medo de sofrer violência no mesmo local em que um dos seus foi brutalmente assassinado.
“A caridade torna-se um problema para a cidadania no contexto da sociedade brasileira, fortemente colonial e racista. Nele, esse ato, que em tese poderia representar benevolência, indulgência, torna-se muitas vezes nocivo porque ele mantém o necessitado na condição de necessitado. Dar dinheiro, doações e promover atividades traz um alento, mas não é uma atitude realmente inclusiva ou promotora de cidadania. Ela pode funcionar em momento extremo, mas não traz aquilo o que uma sociedade como a nossa precisa, uma transformação social efetiva”, diz Tânia, alertando para a naturalização das desigualdades também presente nos atos solidários não espetacularizados ou interessados. “Não estou dizendo que quem doa não o faça com boa intenção, mas, considerando o processo histórico do Brasil, esse ato coloca o caridoso em um lugar especial em relação ao necessitado, deslocando a atenção para a caridade e não para o enfrentamento das questões sociais. Esse deslocamento do problema social para a benevolência pessoal distancia as pessoas da prática de transformação social, dos desafios e disputas políticas implicadas nessa transformação.”
São justamente os ganhos obtidos nessa pessoalização que movimentam nomes e contas bancárias como as de Gabriel Monteiro e Arthur do Val, outro “caridoso” midiático resultante do caldo bolsonarista, o ex-candidato ao governo de São Paulo que foi “secar” refugiadas na guerra da Ucrânia. Nos comentários das redes sociais de ambos, lidos nos vídeos nos quais aparecem supostamente ajudando as pessoas, percebe-se que os ajudados são os que menos interessam, já que o foco vai para o falso heroísmo dos rapazes.
O alívio é que a exposição das armações e/ou segundas intenções também traz impactos negativos para essas imagens construídas à base de redes sociais.”‘São fáceis porque são pobres’. Diga adeus a sua candidatura e vida política, Arthur do Val, diga adeus também a muitos seguidores como eu que não vão mover um dedo para passar pano para você”, lemos em um dos comentários do vídeo no qual o Mamãe Falei aparece ao lado de jogadores brasileiros fugidos da guerra da Ucrânia. Pois é: as celebridades, estejam elas ou não na política institucional, podem ter muito poder nas mãos, mas a interação intensa com fãs-seguidores também torna o posto conquistado muito mais vulnerável às intempéries da fama. A simulação da bondade também tem os seus limites.
Mas o fato é que, até que um ou outro oportunista seja exposto – se for exposto –, a cultura da caridade espetacular já foi mais disseminada e levou vários a saírem vitoriosos nas urnas. Há também um efeito rebote: Gabriel Monteiro ganhou ainda mais seguidores e seguidoras com a circulação de seu nome em âmbito nacional, uma tendência que já havia sido observada por Tatiana Dias aqui no Intercept: o vídeo no qual ele questiona a reportagem do Fantástico teve mais de 2 milhões de visualizações em um único dia.
Nesse sentido, as redes sociais possuem um papel dual, como observa Tânia Hoff. “De 2009 para cá, tivemos uma intensificação da desigualdade, provocada, por exemplo, por uma imigração intensa, em contexto mundial. Há aí um fosso entre quem tem voz e ação e aquele que só recebe a caridade.
As redes sociais permitem uma visibilidade de grupos que fazem suas reivindicações e a palavra de quem não está em condição de cidadania plena ou não tem nenhuma cidadania. Mas elas também mostram outro fosso. O caridoso, o que vive a condição de cidadania, é muitas vezes muito preconceituoso e não admite que as minorias alcancem outros lugares. Ele faz a doação, mas isso não significa que ele queira uma transformação social. Para isso, é preciso que as minorias ocupem os lugares, é preciso reconhecer não só culturalmente as necessidades, mas socialmente.
A caridade sem cinismo
Não resta dúvida que o ato solidário é essencial em diversos momentos em um país de fortes desigualdades sociais como o Brasil. Isso ficou evidente nos últimos dois anos por conta do espraiamento da covid-19, momento em que diversas entidades se reuniram para arrecadar alimentos, remédios e máscaras, entre outros itens, para pessoas em vulnerabilidade.
Foi o caso da organização Coalizão Negra por Direitos que, ao lado de outros nove grupos, criou a campanha Tem gente com fome – dá de comer. A iniciativa, com capilaridade nacional, chega a 222.895 famílias moradoras de periferias, favelas, palafitas, comunidades ribeirinhas e quilombos. Os valores arrecadados são publicizados no site da entidade, que ainda contratou uma auditoria independente.
A historiadora Wania Sant’Anna, ex -secretária de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, faz parte da Coalizão e destaca o papel integralizado da campanha, que consegue focar o emergencial sem perder ações estruturantes de vista. “O que se passa no Brasil é que existe uma quantidade tão surpreendente de pessoas em situação de vulnerabilidade, fome e doença, que é inadmissível pensar que ações voltadas para ajudar ou aliviar esse estado de vulnerabilidade seja explorado sob qualquer ponto de vista, seja ele político ou de uma solidariedade interesseira”, diz ela.
Wânia traz uma perspectiva importante: o fomento de uma solidariedade consequente, que ao mesmo tempo em que ajuda emergencialmente também se soma ao estabelecimento de políticas sociais sólidas. “Não basta apenas usar a caridade como alívio de consciência, muito pelo contrário: o que se exige é que a consciência seja cidadã, aquela que responsabiliza o estado e os agentes políticos para que façam a coisa certa – e a coisa certa é ter políticas públicas para garantir que pessoas tenham dignidade garantida.”
Segundo ela, a campanha “Tem gente com fome” – dá de comer é uma ação emergencial que não abriu mão do enfrentamento ao racismo no país, mas não só: há ainda a centralidade, nos debates, sobre violências contra pessoas LGTBQIA+, mulheres, populações indígena e quilombola. “Estamos muitíssimo conscientes que a maioria das pessoas hoje em situação de fome são negras, e esse estado indigno é resultante do resultado das discriminações étnico-raciais que vivemos no país.
Para finalizar, um último ponto: o que falta para Gabriel Monteiro ser enquadrado efetivamente por exploração de menores? O caso revelado pelo Fantástico só gerou a segunda acusação formal contra o vereador: a 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e Juventude da Capital, do Rio, já investiga possíveis violações de direitos de crianças e adolescentes acolhidos em abrigos de menores na cidade nos dias 19 e 24 de março do ano passado.
Agora, por conta da matéria do programa global (ah: o vereador “escondeu” o vídeo do seu canal), o Ministério Público do Rio de Janeiro instaurou um inquérito civil contra o ex-PM. No entanto, existem diversos vídeos, mais antigos (2020, por exemplo), nos quais o vereador oportunista interpela e constrange crianças, todos com alto número de visualizações. É assombrosa a apatia das instituições frente às ações midiáticas de Monteiro, que já soma 26 milhões de seguidores nas suas redes sociais.
Falando em apatia, até o último sábado, 2 de março, o vereador se apresentava, em letras garrafais, como policial em seu perfil no Instagram. Fiz uma postagem no Twitter questionando instituições como o TSE sobre o caso. No outro dia, o perfil foi editado e o cargo de policial apagado, mas a @ permanece “gabrielmonteiropm”. Resta saber por qual razão os órgãos responsáveis pelas regras a serem seguidas por quem detém cargo eletivo fazem vista grossa para casos hiper midiatizados como este.
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