Lições não aprendidas sobre delação do caso Marielle

O simples fato de a delação não existir já aciona um sinal vermelho na cabeça das autoridades, jornalistas e leitores

Lições não aprendidas sobre delação do caso Marielle

Por Rubens Valente

A eventual delação do policial militar acusado de ter matado a ex-vereadora Marielle Franco (Psol-RJ) e o motorista Anderson Gomes, noticiada há duas semanas com grande destaque por diferentes meios, deve ser recebida com cautela. Digo eventual porque ela ainda não foi assinada e tampouco homologada pelo Judiciário. Portanto, hoje ela ainda não existe.

O simples fato de a delação não existir já aciona um sinal vermelho na cabeça das autoridades, redações jornalísticas e leitores. Como se sabe, antes das assinaturas uma delação pode ser corrigida, ampliada, reduzida e até mesmo cancelada por decisão do colaborador ou da polícia.

A Agência Pública apurou, corroborando informações divulgadas pela imprensa, que a suposta delação de Ronnie Lessa na verdade ainda está na fase das tratativas. Isto é, há apenas conversas preliminares em torno de uma possibilidade.

A Polícia Federal enviou um ofício ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) não para a homologação da delação, ao contrário do que se poderia supor, mas como uma indagação. A polícia perguntou qual o foro competente do Poder Judiciário no caso de a suposta delação de Ronnie Lessa ter como alvo um agente político com foro especial por prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado, se será o STJ ou a Justiça Federal do Rio de Janeiro.

Essa dúvida demonstra o elevado nível de insegurança jurídica que grassa no país quando se trata de um inquérito policial-criminal com algum tipo de repercussão política.

Na ressaca pós-Operação Lava Jato, investigadores já não sabem o que vai acontecer amanhã com seus inquéritos, o que os leva a indagar aos tribunais superiores o que fazer, como fazer e principalmente se podem fazer antes mesmo de começar a fazer.

Nesse ponto, o caso Marielle já sofre efeitos do inquérito de Alagoas, atualmente arquivado, com a destruição de todas as suas provas, por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes sobre o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Em sua decisão, Mendes argumentou que a PF burlou a competência do STF porque supostamente sabia, desde o começo do inquérito, que Arthur Lira era o alvo da investigação. O caso, disse o ministro, deveria ter começado no Supremo, e não na Justiça Federal de Alagoas.

Conforme amplamente divulgado há duas semanas, o nome do conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro Domingos Brazão teria sido citado pelo policial militar Ronnie Lessa nas suas conversas preliminares com a polícia. Lembremos que Brazão foi mencionado nas investigações ainda no ano do crime, em 2018. Assim, pela lógica desenvolvida nas decisões de Gilmar Mendes, também aqui teria ocorrido uma burla à competência do STJ. Será que o entendimento do ministro do STF só valerá para o caso de Arthur Lira? É por dúvidas como essa que a PF foi ao STJ.

É natural o enorme interesse da imprensa e dos cidadãos de um modo geral sobre o desfecho do caso Marielle. Todos querem uma resposta. É questão de justiça para a família, amigos, eleitores e também para a democracia. É muito positivo que seja assim. Já imaginaram o dia em que uma política do tamanho de Marielle for executada sem que as pessoas cobrem uma solução?

Entretanto, contenção e cautela não são inimigas da necessidade do desvendamento do crime. Para começo de conversa, a regra vale para as autoridades públicas de alguma forma relacionadas ao caso. Do ano passado para cá, uma série de declarações do ex-ministro da Justiça Flávio Dino e do diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, antecipou avanços nas investigações. Como tratei nesta coluna em julho passado, a gestão de Dino fez um movimento positivo ao retomar o caso Marielle, mas não pode se enrolar na própria língua. 

Declarações ambíguas e misteriosas de altas autoridades sobre investigações ainda em andamento causam um frisson que funciona como uma pressão desnecessária sobre os investigadores do caso. Num passado recente, o então diretor-geral da Polícia Federal Fernando Segóvia foi destituído do cargo, em 2018, depois que concedeu uma entrevista à agência Reuters na qual minimizou provas obtidas pela Polícia Federal contra o então presidente da República Michel Temer. Considerou-se indevido que um diretor da polícia opinasse sobre aspectos de uma investigação tocada em sigilo por outro delegado. 

Aí está uma lição não aprendida. Em janeiro último, causou espanto ver o atual diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, dizer que ele tinha a convicção de que o caso Marielle teria uma resposta final no primeiro trimestre deste ano. O diretor-geral aparece antecipando passos de uma investigação sigilosa que deve ser tratada com o máximo de discrição e cautela. 

Após a declaração, a cobertura jornalística sobre o caso Marielle se mobilizou para tentar descobrir o que vinha a ser a tal resposta final. É natural a curiosidade, e uma parte indissociável da própria natureza do jornalismo. De repente estoura a notícia da delação que, afinal, não era delação.

Delação existe desde que o mundo é mundo. Que o diga Joaquim Silvério dos Reis, o acusador de Tiradentes e da Inconfidência Mineira. Quando comecei no jornalismo, em 1989, a delação não tinha esse nome, mas era uma prática corrente nas delegacias de polícia principalmente em casos de difícil solução e de maior impacto midiático, como grandes quadrilhas de narcotráfico, sequestros e latrocínios.

O Código Penal de 1940 já dizia, na parte destinada ao crime de sequestro (artigo 159), que o acusado que denunciasse seus comparsas “à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado”, teria sua “pena reduzida de um a dois terços”.

Funcionava assim: o suspeito, normalmente preso, dizia à polícia ou ao Ministério Público que podia ajudar a elucidar o caso, desde que recebesse alguma vantagem. Por exemplo, que recebesse a promessa de cumprir uma pena menor ou de responder ao processo em liberdade.

O delegado ou o promotor então procuravam o juiz do caso e faziam um pedido nesse sentido, como se fosse um apelo: “Fulano está ajudando bastante, solicito ao magistrado que considere essa colaboração neste momento, no ato da sentença ou da definição da pena”. Às vezes não era petição, era apenas uma conversa com o juiz fora dos autos. Ou o próprio promotor, no momento da denúncia, podia solicitar uma pena menor, chamando atenção para a colaboração do acusado.

Em qualquer hipótese, a avaliação sobre a eficácia da colaboração passava por critérios subjetivos, tanto do delegado e do promotor quanto do juiz. Pesariam na decisão não só o espírito colaborativo do acusado, mas também as provas que ele apresentou na hora de acusar seus parceiros. Quanto mais decisivo o delator tivesse sido para o desfecho do inquérito, mais boa vontade ele receberia das autoridades.

Muitos crimes só foram e ainda são elucidados a partir da colaboração de um preso. Em alguns casos, simplesmente não há outra forma de penetrar no muro de mentiras construído pelos criminosos. Uma quadrilha pode deter segredos tão bem guardados que só um dos seus membros haverá de entendê-los e rompê-los. Máfias são reguladas por códigos de silêncio, é preciso uma ajuda interna para destravá-los. Nos anos 1980, Tommaso Buscetta tornou-se o mais conhecido dos diversos arrependidos que implodiram clãs mafiosos na Itália e nos EUA.

Em 2018, a ex-presidente Dilma Rousseff disse que se arrependeu de ter assinado a lei em 2013 que institucionalizou a prática da delação premiada no bojo de uma série de medidas contra organizações criminosas (Lei nº 12.850). É compreensível o desgosto da ex-presidente, manifestado no auge da Lava Jato, mas uma lei não pode ser responsável pelo uso que dela fazem. 

A delação é um instrumento importante para o combate a todos os tipos de crime. Porém, um delator pode mentir de inúmeras maneiras e com variados objetivos. Para proteger um aliado, por exemplo. Ou para mandar um recado a fim de buscar proteção dos verdadeiros culpados. Pode também mentir de forma involuntária, ao apresentar fatos e circunstâncias equivocadas, já que a memória é traiçoeira. Ele pode mentir até porque recebeu uma informação errada de alguém que quis confundi-lo lá atrás.

Para que a palavra de um criminoso seja levada a sério, é imprescindível que a polícia ou o Ministério Público façam uma checagem exaustiva do que ele afirma. É necessário que ele apresente o maior número possível de provas sobre o que alega ter ocorrido.

Em resumo, o que um delator diz pode ser tudo, mas pode ser absolutamente nada. É a principal lição a ser aprendida e levada a sério antes e depois de cada anúncio de delação.

Fonte Agência Pública

Por Jornal da República em 08/02/2024
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