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A eleição em São Paulo e a ameaça existencial ao bolsonarismo
Marçal já não disfarça a sua intenção — ele quer substituir o mito
A candidatura de Pablo Marçal, e o indiscutível sucesso que teve nesta primeira fase de campanha, merece que se vá um pouco mais a fundo na análise. Sinceramente, não vejo aquela candidatura como ameaça à esquerda. Ela não representa uma novidade: é mais do mesmo, apenas outro candidato de extrema direita que substitui o anterior. Nada que a esquerda não tenha já enfrentado. Poderíamos ainda dizer que ela faz mal à direita democrática, se esta existisse. Mas não existe. Há muito que foi engolida pala extrema direita, a quem serve. Portanto, e é aqui que quero chegar, a única dimensão interessante desta candidatura é o que ela representa como desafio ao aparelho bolsonarista — ao seu chefe e à sua família.
Alguém disse que o pior do estalinismo é a perseguição aos dissidentes. Sendo a doutrina científica e o caminho ditado pela razão histórica torna-se impossível aceitar a discordância. A perda de fé não pode ter outra explicação que não seja a traição ou a fraqueza de ânimo. O mesmo é válido para o aparelho bolsonarista — se a autoridade do chefe é posta em causa o que resta? Um programa? Uma ideia? Uma linha política? Isso é coisa de comunistas. Aqui, neste movimento, nada existe para além do chefe. Nada pode existir para além do chefe, do profeta, do Messias. É neste sentido que a candidatura de Pablo Marçal constitui a mais forte ameaça que o bolsonarismo já enfrentou.
Os anteriores dissidentes foram tratados com a fúria que os aparelhos reservam aos que recusam obediência. Toda a violência contra o inimigo interno. Foi assim com Moro, foi assim com Joice Hasselmann, foi assim com Alexandre Frota. Todos foram esmagados logo no primeiro momento e em nenhum caso houve qualquer tipo de contemplação: Roma não paga a traidores. A novidade, agora, é ver o bolsonarismo hesitar entre a ameaça e a contemporização. O bolsonarismo gagueja, balbucia, não sabe bem o que fazer. Está cheio de medo. Pela primeira vez, tem medo. E esse é o único espetáculo que não pode dar aos seus seguidores — não existem “mitos” com medo.
Marçal não é um homem do aparelho. A principal característica do homem do aparelho é “não ser dado a espertezas” e Marçal é dado a espertezas. Ele nada dá ao aparelho e nada espera do aparelho: ele é uma dor de cabeça para o aparelho. É um acólito que recusa acatar as ordens do chefe a quem faz um desafio direto — não preciso de licença para avançar nem preciso do apoio de ninguém para me afirmar. Marçal é um desobediente. Marçal é um herege. O movimento político que pretende criar é uma nova igreja política onde, como no bolsonarismo, ninguém peça medidas, ou propostas, ou ideias, mas uma experiência espiritual de escolha divina e de ódio, muito ódio, à esquerda.
Esta candidatura representa o pior da boçalidade e do niilismo político que ameaça a democracia brasileira. É certo. Mas tudo isso já foi dito e tudo isso já está claro. O que não está dito é que ela representa uma ameaça existencial para o movimento bolsonarista. A extrema direita em São Paulo vive em estado de guerra civil e não vai ficar por aqui, seja qual for o resultado. Marçal já não disfarça a sua intenção — ele quer substituir o mito: ele é o novo mito. Cheio de si, acha que já voou acima de São Paulo. O seu alvo é o Brasil.
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