Nike, Michael Jordan e o inadimplemento eficiente

Nathália Faria de Carvalho

Nike, Michael Jordan e o inadimplemento eficiente

O filme “Air: a história por trás do jogo”, lançado em 2023, conta a parceria entre a marca de artigos esportivos Nike e o maior jogador de basquete de todos os tempos: Michael Jordan. Todavia, não se trata apenas de esporte e dinheiro, mas de valiosas lições sobre as relações e negociações contratuais.

Para contextualizar — sem dar muito spoiler aos leitores que ainda não viram essa brilhante obra —, o filme conta dos bastidores que levaram à formação da conhecida relação comercial entre a Nike e o a então jovem promessa Michael Jordan no início dos anos 1980, trazendo pontos interessantes sobre as estratégias de negociação e persuasão que a marca esportiva e a mãe do jogador tiveram para fechar o contrato.

O acordo comercial trouxe inovação e criou precedentes para outras relações futuras com a inédita inclusão de cláusula que previa a participação de Jordan nos lucros da Nike, com as vendas dos tênis que levariam o seu nome, algo até então inconcebível.

Contudo, o verdadeiro “pulo do gato” na negociação entre a Nike e Jordan foi a criação do “Air Jordan”, que teve sua fama aumentada porque o tema fugia dos padrões e nasceu com uma polêmica: violava a regra da NBA de que os tênis dos jogadores tinham que ter 51% da cor branca. A sacada genial da Nike foi não apenas a escolha do atleta que daria nome ao tênis, mas produzi-lo em preto e vermelho, inovação que fez com o que o uso do tênis nos jogos fosse proibido, com ameaça de multa para Nike de US$ 5 mil por jogo em caso de descumprimento.

Ainda assim, a Nike preferiu continuar com o uso do tênis e Michael Jordan seguiu usando o calçado nos jogos, pagando o preço por isso.

Analisando o filme do ponto de vista jurídico, enxergamos lições valiosas sobre o mundo dos contratos e das negociações. O filme ensina como é importante conhecer o objeto do contrato e a parte com quem você está criando a relação comercial, mas vai além: nos ensina — e nos faz questionar — sobre um método utilizado pela Nike no caso, chamada de teoria do inadimplemento eficiente, ou “efficient breach“.

O “efficient breach” refere-se, basicamente, a uma estratégia na qual uma das partes de um contrato toma a decisão calculada de violar os termos contratuais, buscando otimizar benefícios em vez de cumprir a obrigação original. A teoria do inadimplemento eficiente baseia-se em considerações econômicas e racionais, sugerindo que, em certas circunstâncias, pode ser mais vantajoso financeiramente para uma parte infringir o contrato e pagar eventuais danos do que cumprir as obrigações contratualmente estipuladas.

Os principais fundamentos teóricos por trás do inadimplemento eficiente incluem a teoria dos custos de transação e a teoria dos incentivos.

Sobre a primeira, analisa-se os custos da transação econômica para então chegar à decisão de violar um contrato, quando os custos associados ao seu cumprimento excedem os benefícios esperados. Já na segunda teoria, entende-se que as partes em um contrato são motivadas por incentivos econômicos e, em certos casos, a maximização desses incentivos pode levar à decisão de inadimplemento eficiente.

Basicamente, assim como no caso da Nike, as partes tomam decisões com base no melhor atendimento de seus interesses, considerando cuidadosamente os custos e benefícios associados à sua escolha. No caso do filme — e da vida real —, a estratégia foi bem-sucedida e levou não só a Nike como o próprio Michael Jordan a um sucesso absoluto.

Todavia, é importante destacar que o inadimplemento eficiente não é universalmente aceito e é frequentemente objeto de debates judiciais, uma vez que deve ser levada em consideração a importância de manter a integridade e a confiança das relações contratuais.

Afinal, pode uma parte descumprir deliberadamente o contrato mediante o pagamento de uma multa? Ou não seria uma opção do credor escolher entre o pagamento da multa e a prestação, já que a multa poderia ser qualificada como insuficiente para compensar o inadimplemento?

No sistema jurídico brasileiro, temos dois princípios fundamentais que devem ser considerados na análise de um descumprimento contratual: a boa-fé e a função social do contrato. A boa-fé perpassa pelo dever das partes de cooperar para a boa execução do contrato e a função social vai além, implicando na importância de que os contratos não sirvam apenas aos interesses privados das partes envolvidas, mas também contribuam para o bem-estar social e atendam a certos valores fundamentais da sociedade.

Portanto, a regra no Brasil é de que não se pode admitir o inadimplemento desorientado e a qualquer custo das obrigações. Isso porque a permissão desenfreada do inadimplemento contratual pelo simples pagamento de multas acaba enfraquecendo os contratos firmados, gerando efeitos negativos ao mercado, justamente por retirar das relações comerciais a segurança que lhes deveria ser assegurada. Além disso, pode gerar consequências financeiras abusivas à parte que sofre com o inadimplemento e uma ruptura da confiança contratual estabelecida.

Por outro lado, há meios legítimos e válidos aderentes à boa-fé de se permitir uma escolha pelo cumprimento da obrigação ou pagamento do seu equivalente. Um exemplo clássico muito utilizado nos contratos comerciais são as cláusulas de “take or pay“. Essas cláusulas estabelecem que uma das partes, geralmente o comprador, tem a obrigação de aceitar e pagar por uma quantidade mínima de bens ou serviços, independentemente de sua necessidade real ou intenção de consumir toda essa quantidade. Ou seja, ele aufere uma vantagem na largada pelo compromisso de consumo mínimo assumido e fica obrigado a efetuá-lo ou a pagar o equivalente. Caso não tenha a necessidade ou não retire o produto e, em ambos os casos, a obrigação estará cumprida.

Trata-se de um exemplo de boa-fé em que a partes avaliam o seu risco e estabelecem um real planejamento contratual, admitindo-se a faculdade da escolha entre consumir o bem ou pagar o equivalente.

Portanto, embora existam casos de sucesso — aplaudidos em Hollywood — como o caso da Nike, o inadimplemento eficiente não pode ser considerado uma estratégia para toda circunstância. Assim, é necessário que as partes avaliem cuidadosamente os riscos e considerem as implicações significativas que essa abordagem pode ter em seus relacionamentos contratuais e no mercado em geral. E aos contratantes, é fundamental estabelecer multas que incentivem o cumprimento das obrigações que, inclusive, é o esperando em uma relação de boa-fé.

Via Consultor Jurídico

Por Jornal da República em 22/12/2023
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