Nova Política Nacional de Segurança Pública esconde feminicídios e mortes por violência policial

Nova Política Nacional de Segurança Pública esconde feminicídios e mortes por violência policial

Existe no Brasil um Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que, inspirado no que o SUS representa para a saúde, tem o objetivo de organizar nacionalmente as políticas de segurança executadas pelos estados. O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) acaba de atualizar, por meio de decreto, um dos frutos do Susp: a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social.

A mudança reduziu o poder dos governadores sobre as forças policiais, ao centralizar decisões no Ministério da Justiça e Segurança Pública. Além disso, o novo programa dificulta o monitoramento de feminicídios, que serão dissolvidos no total de homicídios de mulheres, e de mortes decorrentes de ações policiais.

O decreto publicado na última semana subverte os princípios da lei de 2018 que criou o Susp, na opinião do diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, especialista que ajudou a formular o texto enviado ao Congresso pelo governo Michel Temer (MDB). “Os mecanismos de governança, que inovavam na gestão tripartite da segurança, foram abandonados”, afirma.

“Com isso, estados, DF e municípios perdem poder, e o governo federal passa a ser, por excelência, a instância deliberativa das regras da segurança no país. A nova política centraliza no Ministério da Justiça a definição de quase todas as regras e/ou indicadores de monitoramento. A gestão Bolsonaro tenta assumir o controle operacional da segurança pública, em detrimento do contexto subnacional e municipal”, complementa o especialista.

Lima avalia que os chefes dos Executivos estaduais e distrital, diante da necessidade de receberem repasses de recursos, podem ficar reféns do que o governo federal tentar impor. “Pelas novas regras, o dinheiro vai chegar carimbado, os governadores não terão espaço para formular políticas próprias, o que os enfraquece”, explica.
 

Feminicídio e mortes fruto de violência policial
Para o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, escolhas ideológicas da gestão Bolsonaro estão explícitas nas novas regras, sobretudo com a invisibilização de crimes como o feminicídio, que é o homicídio de mulheres qualificado pelo ódio de gênero, e com a não contabilização de mortes em ações policiais. “Ambos foram invisibilizados enquanto categorias de monitoramento. Estão somadas [sem distinção] nos totais de homicídios e homicídios de mulheres”, afirma Renato Sérgio de Lima.

O decreto publicado pelo governo prevê metas de redução de crimes violentos e regras para padronizar o monitoramento das estatísticas – onde os dados sobre feminicídios e violência policial ficaram escondidos. Os crimes cometidos contra os agentes de segurança, por outro lado, ficarão em destaque na divulgação dos indicadores.

Dados sobre mortes de policiais em confronto, suicídios dos agentes de segurança e crimes patrimoniais deverão ser repassados mensalmente pelos estados ao sistema do Ministério da Justiça. Para os demais crimes, os entes federativos têm prazo maior, a partir de três meses, para fechar os indicadores.

“Esse monitoramento mensal é, ou deveria ser, papel de quem está na ponta. Com essas mudanças, o governo federal vai decidir não só política estratégica de segurança, mas os padrões de policiamento. Tira dos governos qualquer capacidade de definir prioridades”, critica Lima.

O que diz o governo
Ao publicar a atualização do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social para o período de 2021 a 2030, o governo federal deu como justificativa fragilidades apontadas por órgãos de controle interno e externo, como a Controladoria-Geral da União (CGU), na versão que estava em vigor desde 2018.

Em nota enviada ao Metrópoles, o Ministério da Justiça e Segurança Pública defendeu que o novo plano “tem como objetivo coordenar ações do governo federal em articulação com os órgãos estaduais, objetivando maior eficiência e eficácia nos resultados e na prestação do serviço público” e que, “em nenhum momento, é apresentado, no texto de atualização do Plano, que o Ministério da Justiça e Segurança Pública deve assumir o controle operacional das forças ou centralizar políticas de segurança pública”.

Sobre a não contabilização dos feminicídios, a pasta alegou que o problema é que “o feminicídio é uma tipificação penal recente, cuja constatação de ocorrência é, em geral, mais demorada de identificação. Assim, as bases de dados dos estados não apresentam um histórico adequado para montagem de uma meta específica, e sua coleta exige mais etapas que as demais naturezas de crime contra a vida”.

A Lei nº 13.104, que tipifica o feminicídio, é de 2015, ou seja, está há seis anos em vigor. Segundo o governo, “o próximo ciclo do plano [daqui a dois anos] deve estabelecer meta específica para feminicídio, o que depende de aprimoramento na estruturação dos dados”. O MJSP alegou ainda que “os dados relacionados às mortes violentas do sexo feminino seguem sendo coletados” e que “foi estabelecida uma meta específica para mortes violentas nas quais as vítimas sejam mulheres”.

As metas
As metas para a redução na criminalidade fixadas pelo novo texto são menos ousadas do que a PNSPDS de 2018, que fixava objetivo total de redução de 3,5% ao ano nos índices, por 10 anos. A nova política implementada prevê diminuição de 28% nessa taxa, também no período de uma década. A meta de homicídios de mulheres é um pouco mais ousada: redução de 44,5% em 10 anos.

Sobre a não inclusão dos dados sobre letalidade policial nos indicadores, a resposta do MJSP é parecida. A pasta afirmou que as informações serão coletadas, mas ficarão, por enquanto, dentro do indicador “homicídio”. Segundo o governo, a alteração tem o intuito de “qualificar e padronizar as coletas e bases de dados sobre as ocorrências dessa natureza nos estados da federação”.

Elas por Elas
Em 2019, o Metrópoles assumiu o desafio que o Ministério da Justiça alega ser difícil: registrar todos os feminicídios do DF. E foi além – contou as histórias de todas as vítimas pelo ponto de vista de jornalistas que, como elas, são mulheres. No premiado projeto jornalístico Elas por Elas, a reportagem passou 365 dias monitorando os casos ocorridos em Brasília e em suas regiões administrativas, a partir dos registros da Secretaria de Segurança, do Ministério Público, do Corpo de Bombeiros Militar e das polícias civil e militar.


Foram aterrorizantes os números de violência contra a mulher em 2019 na capital do país. As delegacias do DF registraram 16.954 boletins de ocorrência enquadrados na Lei Maria da Penha; 89 vítimas sobreviveram a tentativas de feminicídios; e 33 ataques resultaram em morte. Os dados superaram os de 2018. (Do Metrópoles)
 

Por Jornal da República em 02/10/2021
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