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por Alfeu Valença
Talvez o período da pandemia, quando fiquei em prisão domiciliar sem tornozeleiras eletrônicas, tenha me feito mais observador, ou serão as decantadas rabugices da velhice que chegaram?
O fato é que certos modismos linguísticos passaram a me chamar a atenção, e em alguns casos chegam a me incomodar, confesso.
Vejam como, na pandemia, expressões nunca utilizadas tornaram-se corriqueiras, tais como “isolamento horizontal e vertical”. E “distanciamento social”? Se antes distanciamento social podia ser entendido como a quilometragem da Linha Amarela, que liga a miserável favela da Maré à quase norte-americana Barra da Tijuca — socialmente mais separa do que liga, registre-se —, passou a representar a distância mínima entre as pessoas para evitar contágio com o coronavírus, como definido no protocolo de cuidados sanitários.
“Protocolo”. Sim, protocolo, visto que ninguém mais obedece a regras, instruções, normas ou procedimentos; agora, as pessoas cumprem “protocolos”. Ops, cuidado, que procedimento não é mais sinônimo de modo de atuar. Procedimento ficou esnobe e se transformou em intervenção médica: fulano vai ao hospital amanhã fazer um “procedimento” marcado há duas semanas. Assim, desde uma complexa cirurgia ou uma remoção de um furúnculo, quem sabe até a liberação de uma unha encravada, serão “procedimentos”.
Fico a pensar se, algum dia, cortar o cabelo será procedimento e se as simplórias receitas de bolo serão, corriqueiramente, chamadas de protocolos. Isso se protocolo não for sobrepujado pelo termo mais usado nas instruções dos geniais influencers — seguidos por milhões de idioters: “tutorial”.
Imagino eles falando afetadamente: Geeeente, o “protocolo” correto é seguir o novo “tutorial” do bolo de chocolate com morangos. Que tal?
E as “narrativas”? Tenho a impressão de que a ABL resolveu simplificar o seu dicionário e promover aquele substantivo. Ou está havendo um conluio entre políticos e jornalistas, no mesmo sentido? Relato, versão, esclarecimento, interpretação, explicação, exposição, descrição e outras palavras similares foram sumariamente abolidas e substituídas por uma única: “narrativa”. Atentem para debates ou entrevistas televisivas e anotem quantas vezes a palavra “narrativa” é empregada. E pior, percebam que os mentirosos deixaram de mentir, agora eles “criam narrativas”, e tudo bem.
Querem outro exemplo? “Assimetria”. Atualmente não existem coisas ou opiniões diferentes. Elas são simplesmente “assimétricas”.
“Presencial” é outra palavra que, até pelas ausências forçadas por causa dos modernosos home offices e cursos à distância, também está fazendo enorme sucesso.
Os mais antigos faziam ginástica, depois passaram a fazer “exercício”, evoluíram para “malhar” e, hoje, eles treinam.
Outro modismo que veio para ficar é iniciar a frase oral com “então” ou “de repente”. E o uso constante de “de boa” e “do nada”? O verbo amar, que antes significava o suprassumo, o grau mais elevado do sentimento humano, tornou-se tão corriqueiro que amiúde se ouve: “amei” o sorvete, “amei” aquele filme, “amo” este sapato. Agora, ama-se tudo, desde uma pessoa querida e admirada até uma buchada de bode!
Eu não queria me alongar neste texto, mas não posso terminá-lo sem citar o verbo “entregar”, que todos conhecem à farta como pôr a guarda, passar às mãos, ceder ou até, na linguagem policialesca, delatar e alcaguetar, certo? Errado. Há anos utilizado no mercado financeiro no sentido de conseguir um resultado prometido ou cumprir uma determinada meta, agora generalizou-se e vale para qualquer atividade. No futebol, o artilheiro que não faz gols “não entrega”. Um bom ator sempre “entrega”. Outra, mais recente, do mercado financeiro é chamar as necessidades dos clientes de — pasmem — “dor”. Assim, os bancários são treinados para identificarem e aliviarem as “dores” dos seus correntistas.
Os vidrados em futebol, como eu, não precisarão de maiores explicações para entender os já corriqueiros usos de “arena” para estádio, “assistências” significando passes para os artilheiros e retranca sendo chamada de “marcação baixa”.
Lembram quando “resenha” era a descrição resumida de um livro, filme ou peça teatral? Agora significa qualquer reunião para um descompromissado bate-papo.
E, para os que tiveram paciência de ler até aqui, não percam a oportunidade de usar o moderníssimo adjetivo “resiliente” ao invés dos obsoletos resistente, obstinado, forte ou inquebrantável. Soará mais chique!
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