O achismo é o assassino das Políticas Públicas de proteção aos pobres

O achismo é o assassino das Políticas Públicas de proteção aos pobres

É comum andarmos pela cidade do Rio de Janeiro e identificarmos pessoas revirando lixo, implorando por moedas, água, comida, qualquer coisa que ajude a aliviar a fome e seus múltiplos sofrimentos. É curioso como as três esferas de governo não conseguem estruturar um programa nacional ou até mesmo de escala estadual, respeitando as particularidades de cada região e atuando de maneira articulada com a sociedade civil organizada, com o objetivo de garantir territórios protegidos da fome. Logo, podemos nos perguntar se a pobreza e a miséria são um projeto político no Brasil de hoje. 

Se por um lado os governos e seus gestores não compreendem que a fome voltou a nos assolar, por outro, a sociedade civil organizada faz sua parte e estimula o sentimento solidário enraizado neste Brasil profundo e desigual.  

É preciso dar um basta nos achismos, na falta de responsabilidade política e nos palpites sem coerência ou evidências técnicas. Trata-se de um problema concreto que demanda ações imediatas de alívio social e um plano de médio e longo prazo capaz de inibir sua reprodução sistêmica. A invisibilidade de quem sofre a miséria é intencional e sintomática, mas a sociedade que permite que isso aconteça participa de um sistema com falhas crônicas. 

O auxílio emergencial proposto pelo governo federal não supre as necessidades elementares como alimentação, higiene pessoal e limpeza das casas das famílias vulneráveis. Estudos realizados por pesquisadores do Insper comprovam que o aumento desenfreado dos preços de bens e consumo como o arroz (70%), o feijão preto (50%), a batata (47%) e a cebola (69%) fez subir o índice inflacionário resvalando diretamente ao consumidor final. Esse aumento brutal dos alimentos possui reflexo direto sobre as famílias pobres, que têm majoritariamente a renda comprometida com itens básicos de consumo.   

Por esse e outros motivos, me parece pouco razoável imaginarmos a possibilidade de uma família se alimentar com R$ 250 de apoio do governo federal, estadual ou municipal, caso os auxílios não se complementem. Infelizmente, esse fenômeno não se resume apenas à esfera nacional, pois nos deparamos com opiniões e sugestões de ações sustentadas pelo achismo, igualmente em nível local. No último domingo, a Secretária Municipal de Assistência Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, quando interpelada pelo Jornal O Dia sobre os efeitos da pandemia e o drama das pessoas em situação de rua, respondeu em devaneio: “O acolhimento tem sido priorizado, mas não adianta acolhermos e eles saírem depois, por isso começamos a fazer ações de capacitação e empreendedorismo”. Me parece que tanto a motivação como a relação causa e efeito desta narrativa estão dissonantes da realidade. 

A culpa da falha no acolhimento é do acolhido ou da infraestrutura e metodologia que não são competentes em oferecer respostas atrativas, capazes de romper os vínculos com a situação de rua? A solução está apenas no indivíduo ou nos acessos que esse sujeito tem na sociedade? É admissível crer que uma pessoa enfrente a dureza de estruturar sua subsistência na rua por opção? É sério isso?  

Como falar de empreendedorismo com alguém que não tem documentos básicos como certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF e carteira de trabalho? Se a pessoa ou a família não tem onde morar ou o que comer, como pensar em prover seu próprio emprego? Me parece uma apropriação do discurso empreendedor para legitimar a desresponsabilização do Estado perante a um problema estrutural. Não há mensagem aceitável sobre o empreendedorismo para pessoas em situação de rua e famílias em situação de extrema pobreza e pobreza neste momento de pandemia. 

Essas são perguntas fundamentais. Contudo, me parece que a atual gestão da Secretaria Municipal de Assistência Social não consegue entregar uma proposta pragmaticamente admissível para reversão deste quadro. A esterilidade das ideias e das ofertas de inclusão não permitem que os trabalhadores dessa política pública consigam prover a proteção social necessária aos vulneráveis. A política atual, em todos os níveis, escolhe produzir cidadãos invisíveis para deliberadamente não os enxergar. De acordo com os dados do último censo feito pela prefeitura do Rio em 2020, das 7242 pessoas em situação de rua, 5469 estavam dormindo na rua e 752 foram para a rua apenas no período da pandemia, principalmente pela perda de emprego. O perfil das ruas é claro: são predominantemente homens, pretos ou pardos, no auge da vida produtiva (31 a 49 anos) e que foram para a rua por problemas de convívio familiar ou perda de renda. Muitos com problemas associados a transtornos de saúde mental e uso abusivo de drogas, mas na sua grande maioria, quando as pessoas são perguntadas sobre o que precisam para saírem das ruas respondem que precisam de emprego e moradia, nesta ordem.   

Decerto, uma política pública eficiente é aquela que resolve um problema real e corrige uma falha local, educacional, social, de saúde ou de mercado. Faz-se necessário incluir soluções habitacionais, de educação, de acesso diferenciado à saúde, empregabilidade e renda para atender a demanda que essas pessoas apresentam no dia a dia. É preciso coragem para ouvi-las e repactuar os serviços públicos municipais que são ofertados e, principalmente, é imprescindível entender que somente um plano intersetorial de médio e longo prazo, com a utilização de dados qualificados e com a participação dos movimentos sociais e instituições ligadas ao tema é capaz de dar vazão à realidade hoje existente.  

Allan Borges é Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV 

Foto: Reprodução/Internet. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Tribuna da Imprensa Digital e é de total responsabilidade de seus idealizadores. 

Por em 31/03/2021
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