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por Roberto Bitencourt da Silva
Triângulo da tristeza foi a produção cinematográfica vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 2022, e está em cartaz nos cinemas brasileiros, como também se encontra disponível em diferentes plataformas de streaming. O filme concorreu a três estatuetas do Oscar, incluindo a de melhor filme. Trata-se de uma produção europeia, dirigida pelo sueco Ruben Östlund, cuja narrativa consiste em um estupendo retrato da nossa época.
O filme pode ser classificado como uma obra cultural portadora da capacidade de iluminar traços marcantes do capitalismo contemporâneo. Triângulo da tristeza apresenta uma potência descritiva incomum, evidenciando aspectos decisivos que configuram as assimétricas relações sociais entre as classes sociais e que, em escala global, hierarquizam territórios e povos. Nota amigável sobre este texto: as observações abaixo têm doses de spoiler.
Dividida em três partes, a história inicia explorando uma situação arquetípica do contraste entre a projeção pública das autoimagens veiculadas pelos indivíduos e os meios materiais efetivos de vida a que têm acesso. Um jovem casal de modelos protagoniza a parte primeira do filme. Um casal adepto de comportamentos absolutamente fúteis e superficiais, que orienta a vida pelos vazios hábitos preponderantes nas redes sociais.
Nesse sentido, tudo precisa ser “instagramável”; triviais e recorrentes experiências de vida são submetidas à exposição pública, com cliques fotográficos destinados a nutrir o ego, sobretudo da modelo feminina, mas também saciar a volúpia por consumo supérfluo de um suposto estilo de vida tomado como exemplar e exitoso, para seguidores do mundo digital.
Todavia, acalorada e constrangedora discussão entre o casal de modelos, particularmente provocada pelo homem, discussão acerca de uma conta a ser paga em um restaurante chique, revela grandes incongruências entre as exigências cotidianas impostas pelo capitalismo do espetáculo infocomunicacional – que coloniza intensamente a subjetividade humana – e os meios materiais que não viabilizam tais exigências, não satisfazem as expectativas criadas.
A segunda parte do filme, intitulada “Iate”, é o ponto alto da película. Ela consiste em uma verdadeira síntese das relações sociais espoliativas e hierárquicas moldadas pelo capitalismo. Mobilizando um approach marxista, essa segunda parte toma uma luxuosa embarcação marítima como alegoria da sociedade capitalista. Com rica inspiração, aqui são utilizados pressupostos da categoria de significação da “totalidade”, ou seja, uma perspectiva abrangente sobre a realidade, na qual a “floresta” assume maior importância do que as dispersas “árvores” individualizadas. O todo precede, organiza e articula as particularidades. Eis o papel do iate.
Por um lado, vemos o desfile de passageiros, compostos por ultrarricos burgueses, que agem como donos do mundo, senhores das vontades alheias. Os seus comportamentos são retratados nada menos como umbigocêntricos, pois requerem sempre uma satisfação imediata das suas paixões e dos seus desejos, por mais extemporâneos que eles sejam. Do ponto de vista racial e geográfico, tais passageiros são formados por brancos ocidentais.
De outro lado, a antítese imediata ao mundo da ostentação e do desfrute do prazer burguês é representada por uma tripulação de trabalhadores, cuja orientação é para ser completamente dedicada e dócil aos imperativos burgueses. Constituída por funcionários brancos ocidentais, estes trabalhadores de primeira classe travam contato direto com os personagens do poder e a eles reservam as suas atividades. O destino existencial do trabalho é aqui perseguir a saciedade domesticada dos apelos egóicos burgueses. Cumpre salientar: são trabalhadores visíveis para o poder. Possuem, com efeito, o status de serem reconhecidos pela burguesia, de modo algum como iguais, mas ao menos enquanto gente portadora de alguma dignidade.
A partir daí a categoria totalidade – conforme entendimento dado pelo sociólogo Guerreiro Ramos, uma categoria interpretativa que é chave para a compreensão do mundo, sob a ótica marxista –, essa categoria ganha contornos mais nítidos em Triângulo da tristeza. Um outro segmento importante dos personagens instalados no navio aparece e é formado por trabalhadores invisíveis aos olhos dos abastados passageiros. Refiro-me aos trabalhadores que se encontram no setor de limpeza, na cozinha e manutenção das máquinas, aqueles com os quais a excentricidade burguesa não trava qualquer contato. Correspondem a trabalhadores não-brancos, latinos, morenos, asiáticos e negros. Obscuros, silenciados e invisíveis.
Eles são integrados por imigrantes e sem documentos nos países do Ocidente. Mas, por extensão, igualmente formam esse contingente os trabalhadores do Terceiro Mundo que não imigraram para o Ocidente. Se o capitalismo hierarquiza as sociedades em classes sociais, ao mesmo tempo também instrumentaliza o imperialismo, de sorte a promover desigualdades no mundo entre povos e trabalhadores. Essa divisão adicional está patente no iate.
Escalas desiguais de labor global, com atribuições distintas dadas às ocupações na divisão internacional do trabalho: aos invisíveis trabalhadores da periferia não-branca do capitalismo recai o trabalho produtivo, isto é, o trabalho menos valorizado, contudo mais elementar para a reprodução social e a acumulação de lucros e capital. Deixando a película um pouco de lado, o referido tipo de trabalho é encarnado pela agricultura, a extração de recursos naturais e energéticos, a indústria. É o trabalho que move as máquinas, faz o sistema girar. Enquanto isso, os trabalhadores ocidentais são incumbidos do trabalho improdutivo, ou seja, a atividade laborativa circunscrita aos serviços, à esfera da circulação e distribuição de bens. O iate é a metáfora que espelha esse mundo desigual e contraditório. Espelha de forma brilhante.
Na segunda parte, o espectador ainda se depara com um personagem curioso, bastante peculiar: o capitão do iate. Ouvinte da Internacional comunista (sim, o hino socialista toca no filme), o capitão interpretado por Woody Harrelson autodefine-se como um “comunista de araque”, em diálogos travados com passageiros. Expressando explícito sentimento de impotência política, ainda que eloquente em sua mordaz crítica moral ao capitalismo, de resto o personagem não deixa de estar integrado ao sistema que merece a sua repulsa (Ele é o capitão. Ele guia o barco sob o domínio dos parasitários passageiros burgueses. Uma personificação das esquerdas que ocupam governos no capitalismo neoliberal e financeiro?).
Ocorre um naufrágio. Este foi motivado, em boa medida, por um bombardeio realizado por piratas: trata-se da representação de uma quarta camada da coletividade global e periférica destituída de posição no sistema? Os “inempregáveis” da retórica liberal do dia a dia, subempregados crônicos, trabalhadores desqualificados e descartados? Totalmente à margem do sistema, estratos sociais duramente oprimidos e que possuem segmentos específicos que optam afirmar as suas existências por meio da violência cega e irascível?
Em consequência, a terceira parte do filme ensaia certos laivos de uma utopia. Os náufragos capitalistas que sobreviveram ora não possuem qualquer função, nesse estado inovador de ordem social que se insinua em uma ilha. Tentam se prevalecer, mas não trabalham. Nada oferecem de útil, restando a sua subsunção ao trabalho. Este sim, se afirma como força decisiva e central nas relações entre os náufragos. Faz prevalecer o adágio marxista que ressalta: “A cada um segundo as suas capacidades, a cada um de acordo com as suas necessidades”. A frase chega a ser enfaticamente mencionada na película.
É Abigail (interpretada por Dolly De Leon), a personagem que representa uma trabalhadora não-branca, chefe da limpeza no barco que se foi, Abigail quem assume a liderança do grupo na ilha, devido à sua habilidade para pescar, fazer comida etc. O trabalho se impõe, subvertendo as hierarquias sociais anteriores. Uma inovadora tessitura social vai se delineando, não sem operar com determinadas reminiscências do passado, já que, dialeticamente, o novo não surge a partir de um corte absoluto com o velho. Sob vários ângulos, a narrativa do filme guarda significativa convergência com o paradigma social e econômico do marxismo.
O Triângulo da tristeza é um filme imprescindível, um extraordinário produto cultural que incentiva o espectador a ter a sua capacidade de percepção mais aguçada sobre o nosso tempo. Desagradável escatologia representada no barco e à parte (é a náusea do diretor com o mundo que descreve de forma tão perspicaz?), a película é uma síntese das mazelas do capitalismo, uma sátira corrosiva do universo comportamental do Ocidente, em particular, e das prepotentes burguesias, em geral. Nota singularíssima da narrativa é a valorização ímpar conferida ao trabalho, tomando-o como dimensão fundamental da vida. Imperdível.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal da Última hora e foi publicado, originalmente, pelo site Jornal GGN.
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