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Do Metrópoles - Para driblar as estatísticas do feminicídio e se desvencilhar das amarras de um relacionamento abusivo, Jandaraci Araújo, de 48 anos, decidiu deixar Salvador (BA), há duas décadas, para reescrever a própria história no Rio de Janeiro (RJ). Como mulher negra, ela tinha quase o dobro de chances de ser assassinada pelo companheiro, em comparação com uma mulher branca, de acordo com o Atlas da Violência 2020.
Ao pisar em solo carioca para morar na casa de uma tia, em Nova Iguaçu (RJ), município da Baixada Fluminense, ela partiu em busca de emprego. No entanto, só recebeu negativas. Mesmo com a formação de tecnológa em metalurgia e cursos de informática e mecânica, o racismo estrutural impôs uma série de barreiras.
Entre os comentários, um, em especial, ficou marcado: “‘Nossa, você sabe falar’. Quando ouvi aquilo, eu senti mais uma vez o quanto aquela busca seria difícil”.
Com a necessidade de colocar comida em casa e cuidar das duas filhas – Diumara, com 6 anos à época, e Luana, com 2 –, veio a solução: vender salgados nos vagões do metrô e nas ruas do centro do Rio. “Assim, eu consegui sustentar a mim e as meninas, continuar a produção e bancar a minha inscrição na faculdade de marketing. O segredo? Sempre fui muito boa em exatas, e fazia os cálculos certinhos de quanto eu precisava vender por dia.”
Certa vez, um professor universitário que comprava, diariamente, o lanche de Jandaraci perguntou sobre a história dela. “No dia seguinte, ele me deu um cartão e pediu que procurasse uma de suas gerentes. Quando fiz o contato, ela me encaminhou para uma vaga de estágio em uma das maiores empresas de varejo do país”, compartilha.
Esse foi o início de uma trajetória de sucesso. Depois de ser efetivada na empresa, Janda foi transferida para São Paulo (SP) e cresceu no ramo empresarial. Ocupou a cadeira da diretoria do Banco do Povo — programa de microcrédito produtivo, desenvolvido pelo governo paulista —, foi secretária de Empreendedorismo, Pequenas e Médias Empresas do estado e agora atua como executiva do mercado financeiro, na área de sustentabilidade.
“Eu costumo dizer que a gente só sonha com o que vê. Os números estão aí: mulheres negras ganham menos do que homens e outras mulheres brancas. A gente precisa fazer malabarismos maiores. Educação financeira é fundamental para que a gente chegue ao fim do mês com as contas e com a saúde mental em dia”, salienta.
As vítimas de violência doméstica revelaram, por meio da pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que a dificuldade de garantir autonomia financeira foi o fator que prolongou a permanência delas em situação de vulnerabilidade. Cerca de 25% das entrevistadas apontam, como um agravante à agressão dentro de casa, a perda do emprego ou a impossibilidade de trabalhar para assegurar renda própria.
“Situações de violência doméstica se dão, muitas vezes, pela pobreza e são acirradas pela falta de acesso ao poder de compra e a outros aspectos econômicos. A vulnerabilidade social se apresenta como um grande disparador de violências intrafamiliares, seja de gênero, seja contra crianças e adolescentes”, pontua a psicóloga Alyne Siqueira da Silva, especializada em saúde da mulher.
No caso de Jandaraci, a independência financeira a empoderou para seguir rumo à libertação, acompanhada das duas filhas pequenas. “Eu precisava sair desse ambiente de perseguição e violência, antes que fosse tarde. Por isso, encarei essa mudança como uma grande virada. Mas ter meu próprio dinheiro não foi o único fator. O apoio incondicional da minha família, por exemplo, foi fundamental. Existe uma pressão psicológica e uma grande dificuldade em quebrar o ciclo”, pondera.
Embora não sejam muros que separem a comunidade negra e periférica dos espaços de poder, a barreira social que exclui a maior parcela da população brasileira é construída sobre estruturas sólidas de desigualdade social sistêmica. No caso de mulheres negras (pretas e pardas), a vulnerabilidade socioeconômica é um dos mais efetivos mecanismos de silenciamento.
A vida das brasileiras é atravessada por limites de raça, gênero, território, classe social e violência. Cada uma dessas camadas reforça a ótica da exclusão econômica. A falta de letramento financeiro posiciona esse estrato social na base da desigualdade de renda no país.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,10% dos brasileiros se declaram negros. Eles também representam 75% da população com menor rendimento. Quando há um recorte de gênero, a desigualdade econômica é ainda mais acentuada. O salário médio mensal de mulheres negras é o mais baixo do país.
Elas recebem 70% a menos que mulheres brancas, enquanto homens brancos ganham mais que o dobro. Com salários menores e os maiores índices de violência, o Brasil tem mais de 11,4 milhões de famílias formadas por mães solo, a maioria negra (7,4 milhões).
Em contexto estrutural, no entanto, um bom planejamento financeiro esbarra em obstáculos primordiais à sobrevivência de brasileiras pretas e periféricas. “As mulheres pobres estão lutando para sobreviver. Como falar em planejamento para pessoas que não têm dinheiro para comprar pão para o próprio filho?”, questiona Kelly Quirino, pesquisadora em gênero e raça da Universidade de Brasília.
Antes de qualquer gestão, na visão da especialista, falando na parcela da população composta por mulheres vulneráveis e mal-remuneradas, o primeiro passo é qualificá-las e pagar melhor profissões relacionadas aos cuidados. “A escravidão terminou, mas muitas práticas de trabalho continuam as mesmas. Pessoas pretas, trans e pobres são excluídas da sociedade. Não têm carteira assinada, não têm direitos trabalhistas. Se a gente não tem as condições básicas supridas, como é possível ter sonhos?”, assinala Kelly.
Falar em casos fora da curva e de mulheres que conseguiram driblar essa situação pode levar ao mito da meritocracia, na visão da psicóloga Alyne Siqueira da Silva. “Há um risco de transformar essas barreiras estruturais em uma responsabilidade individual, de atribuição do sujeito. Isso entra em uma lógica meritocrática e coloca pressão sobre as mulheres”, explica. Não há uma relação de causa e consequência.
“Pensando em dados, somos 28% da população brasileira e 24% da força de trabalho, mas apenas 16% do consumo nacional. Pessoas negras trabalham mais, existem mais, mas consomem menos. É notável essa disparidade de acesso econômico”, argumenta Geórgia Barbosa, empreendedora e cofundadora da plataforma Afroricas. O projeto conduzido por ela produz conteúdo sobre educação financeira, habilidades interpessoais e carreira para mulheres negras.
Há quase 10 anos em solo brasileiro, a ex-consulesa da França em São Paulo Alexandra Loras enxerga que o problema é muito mais abrangente do que apenas falar em cifras monetárias. É também uma questão de cerceamento de direitos e falta de acesso às posições de poder. Na visão da mestra em ciências políticas, o racismo no Brasil não faz distinção de classe econômica.
“Eu vejo [a realidade] como uma espécie de teto de vidro. Todos sofremos preconceito. Não adianta ter estudado nas mesmas escolas que CEOs de grandes empresas na França, ou que os presidentes Macron e Sarcozy, como é o meu caso. A sociedade patriarcal racista em que estamos não deixa pessoas negras ascenderem, tornarem-se a melhor versão delas mesmas, e conquistarem espaços de poder e decisão”, frisa.
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