O racismo de quem chora pela Ucrânia, mas ignora a dor que está ao seu lado

O racismo de quem chora pela Ucrânia, mas ignora a dor que está ao seu lado

Da Ponte Jornalismo - Som de tiros e bombas. Blindados avançam sobre as ruas. Homens em trajes militares, armados de fuzis, invadem as casas da população civil, arrombando portões, atirando em pessoas e destruindo pisos e paredes. Assustados, moradores se trancam em suas residências, sem ter para onde fugir. A internet deixa de funcionar. Em meio ao ataque, postos de saúde fecham as portas, escolas não abrem e milhares de alunos ficam sem aulas.
Poderia ser na Ucrânia, de onde cenas muito parecidas com essa passaram a inundar o noticiário de todas as televisões e sites de notícias do Brasil, em todas as horas, virando assunto de tudo quanto é rede social e de todas as conversas, desde que o país foi invadido pela Rússia de Vladimir Putin, na madrugada de quinta-feira (24/5). Mas as cenas que abrem esta reportagem aconteceram no dia anterior, bem longe do inverno do Leste Europeu, mas aqui mesmo, deste lado do Atlântico, em pleno verão carioca.

 

Tratava-se de uma operação realizada em 8 das 16 favelas que integram o Complexo da Maré, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, por policiais militares do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), acompanhados da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Os ataques contra a população não partiam de um Exército inimigo, mas de quem deveria protegê-la.
 

Ao contrário da comoção gerada pelo sofrimentou europeu, a dor dos moradores das comunidades do Rio passou despercebida para a maioria dos brasileiros. As notícias sobre a operação policial na Maré saíram principalmente em meios independentes, como o Maré de Notícias, e nos relatos de moradores que foram às redes sociais denunciar o que estavam vendo. Como a jornalista e doutoranda na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Gizele Martins, 36 anos, autora do livro Militarização e censura – A luta por liberdade de expressão na Favela da Maré (NPC, 2019).
 

O comentário de Gizele também não recebeu a mesma solidariedade que as postagens de ucranianos vítimas da guerra costumam ganhar nas redes. Na verdade, solidariedade nenhuma: todas as respostas ao tweet foram negativas e atacaram a jornalista por criticar a violência policial.


“Eu só queria trabalhar, mas não dava para sair de casa. Estava sem internet há cinco dias e ia para o escritório trabalhar, mas quando tem operação a vida para, os postos de saúde fecham e as escolas também. A operação na quarta durou o dia inteiro”, conta Gizele à Ponte. A falta de solidariedade com o sofrimento da Maré, na mesma semana em que tanta gente se sentiu comovida com o sofrimento em Kiev, infelizmente não a surpreendeu. É sempre assim.
 

“Os bairros que estão do lado da favela da Maré, as pessoas desses locais não se incomodam com o barulho do tanque, ou do caveirão, ou do helicóptero blindado que passa aqui na favela e atira no chão e nos corpos favelados e negros, não sem comovem. Mas se incomodam com um conflito e uma guerra na Rússia e na Ucrânia”, compara a jornalista.

É uma situação que expõe um contexto de invisibilidade, de criminalização da pobreza e de racismo. “Falamos de novo de racismo e de um Estado brasileiro que é dono das mídias e que faz com que toda uma sociedade aplauda o sangue negro no chão das favelas do Rio de Janeiro”, aponta Gizele. “Eles nos culpabilizam no lugar de problematizar o porquê existem vidas negras sendo assassinadas a cada 23 minutos no Brasil. Não há esse questionamento. Então há, sim, uma diferença de cobertura, de apelo e de comoção”, aponta Gizele.
 

A jornalista aponta que “países europeus e populações brancas historicamente têm apelo midiático” por serem os que detêm o poder no mundo. “Há sempre uma relevância maior a tudo o que ocorre nesses locais, porque eles detêm todas as forças também, bélica, indústria, midiática, são países colonizadores”, diz. E dá um outro exemplo: “Existe um ataque do estado israelense contra a população palestina há décadas e isso não tem a mesma proporção midiática”. 
 

Essa visão racista, de encarar a violência contra corpos brancos e europeus como algo fora da normalidade, e que por isso deveria gerar horror e comoção, fica evidente nos atos falhos de jornalistas e comentaristas internacionais. “Este não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão, onde há décadas de conflito. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia – tenho que escolher essas palavras com cuidado também –, onde você não esperaria que isso acontecesse”, disse o repórter Charlie D’Agata, da CBS News.
 

Outro que desnaturalizou a violência contra europeus foi o jornalista francês Ulysse Gosset: “Estamos no século 21, em uma cidade europeia, e temos disparos de mísseis de cruzeiro como se estivéssemos no Iraque ou no Afeganistão, dá para imaginar!”.
 

Mais explícito, David Sakvarelidze, ex-procurador geral adjunto da Ucrânia, destacou que a morte choca mais por atingir gente branca: “É muito tocante para mim porque estou vendo europeus loiros e de olhos azuis sendo assassinados”.
 

Os números mostram o alcance da violência estatal promovida contra as comunidades fluminenses. Uma operação ocorrida há pouco mais de duas semanas na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, zona norte, deixou oito pessoas mortas e 5.740 alunos ficaram sem aulas. Somente no ano passado, mais de 4.600 tiroteios foram registrados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, uma média de 13 por dia, de acordo com dados do Relatório Anual de 2021 do Instituto Fogo Cruzado. Ademais, as operações policiais provocaram a morte de 1.084 vidas, deixaram 1.014 pessoas feridas e 17 crianças e 43 adolescentes baleados na região metropolitana.
 

Apesar da dimensão da violência, Gizele afirma que não se pode chamar de “guerra” o que acontece aqui. “Nas favelas e periferias do Rio, quem nos ataca é o Estado. Um Estado que tem do seu lado outros tipos de política que atacam a vida negra e pobre favelada para além dos ataques bélicos”, afirma.
 

Outro ponto mencionado pela moradora da Maré é a intensa utilização de novas tecnologias de guerra nas favelas. “Fazem da gente laboratórios de uma política da morte, testam nas nossas vidas os tanques, os helicópteros blindados e as armas, acredito que esses conflitos em territórios empobrecidos, seja no Brasil, no Haiti, na Palestina são para fazer das nossas vidas grandes laboratórios de uma política da morte”, destaca. “Por trás disso há grandes empresas bélicas e de tecnologias de vigilância fazendo testes com as nossas vidas.”
 

Para Fransérgio Goulart, coordenador da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), os ataques do estado do Rio de Janeiro contra a população negra e pobre são possíveis de serem comparados a uma verdadeira guerra. “A violência e as opressões não podem ser hierarquizadas, o que precisamos fomentar é a reflexão do porque a guerra na Ucrânia mobiliza e sensibiliza a sociedade a se posicionar e a guerra aos territórios de favelas, a guerra aos negros e pobres não?”, questiona. “Sei que alguns críticos irão dizer: ‘Mas há guerra no Brasil? Há guerra nas favelas?’ Digo que sim, pois o Estado capitalista racial no Brasil constituiu corpos negros e periféricos como inimigos.”
 

O ponto em comum entre a guerra vivida na Ucrânia e os conflitos nos territórios das periferias cariocas é o capitalismo, afirma ele. “Lembrando que são contextos totalmente diferentes, mas o que tem de comum é que essas guerras são produzidas pelo imperialismo. Tanto nas favelas quanto na Ucrânia, ou seja, se trata da sociedade capitalista.” Isso demonstra para ele que a violência está banalizada há muito tempo. “Desde sempre pois determinados corpos, como negros e periféricos não são considerados humanos e não sendo humanos, a vida destes não vale nada após muito produzir no sistema capitalista racializado”, critica.
 

O ativista vive em um território dominado pela milícia no Rio e por isso prefere não citar o nome do bairro, ele relata ainda que o sentimento dos moradores com tanta violência é de “muita dor e adoecimento”. Ainda assim, são criadas formas de acolhimento entre eles. “Como o Estado é o promotor destas violências, também percebemos que não será este Estado que irá colaborar com o fim deste adoecimento e a partir disso constroem-se apoio mútuo e estratégias de proteção e cuidado nestes territórios.”

Por Jornal da República em 08/04/2022
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