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Há 40 anos, o olho no relógio é fundamental para o sucesso de um desfile na Sapucaí. Estourar o limite de 70 minutos na travessia da Avenida custa pontos que podem fazer falta na hora da apuração. Essa preocupação com o tempo está na própria origem da passarela que é palco das principais escolas de samba do país. Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, o Sambódromo carioca, que completa quatro décadas em 2024, nasceu sob o signo da urgência. Iniciada em outubro de 1983, a obra foi concluída em apenas quatro meses, em cima da hora para receber o carnaval de 1984.
A façanha de colocar de pé empreendimento tão grande e complexo em tempo tão exíguo envolveu três empreiteiras e milhares de operários trabalhando em ritmo alucinante. Eram três turnos que se revezavam 24 horas por dia. A obra foi dividida em setores, com cada empresa responsável por um trecho. O fato de a estrutura ter sido toda pensada em módulos pré-moldados de concreto armado também é apontado como decisivo para o sucesso da empreitada.
— Eu assegurei ao Oscar que era possível fazer. Mas o trabalho era intenso. Mal terminavam os cálculos dos projetos, aparecia alguém e levava o material para o canteiro — conta o engenheiro José Carlos Sussekind, responsável pelos cálculos estruturais da maior parte das obras de Niemeyer a partir dos anos 1970.
Em 2 de março de 1984 — contrariando a ala dos céticos e calando o cordão dos críticos —, a Império do Marangá, escola de Jacarepaguá, inaugurou o Sambódromo em um desfile oficial, na disputa do Grupo 1-B. Lembra da importância do tempo? Então: a escola atrasou 45 minutos, perdeu cinco pontos e foi rebaixada naquele ano. Jamais voltou à Sapucaí.
Nos dias seguintes, entraram em cena as escolas do Grupo 1-A, equivalente ao Grupo Especial de hoje. Logo de cara ficou claro que o Sambódromo chegou trazendo mudanças que transcendiam o espaço físico: pela primeira vez, os desfiles foram realizados em dois dias. No domingo, a campeã foi a Portela. Na segunda-feira, a Mangueira se consagrou. No sábado seguinte, as escolas voltaram à Avenida para o Supercampeonato, precursor do atual Desfile das Campeãs. A disputa, que nunca mais se repetiu, foi vencida pela Estação Primeira.
Para fazer bonito no novo espaço, as escolas foram obrigadas a inovar cada vez mais: alegorias ganharam altura, a comissão de frente e várias alas passaram a ser coreografadas em exaustivos ensaios. Foi-se o tempo também em que a comissão de frente se limitava a saudar o público com fraque e cartola, apresentando solenemente a escola. No Sambódromo, virou grande atração, com artifícios de ilusionismo e interpretação dramática agregados ao enredo.
Passado mais tempo, aconteceu de a própria passarela precisar se adaptar ao gigantismo das escolas. Hoje, as agremiações podem controlar a iluminação da Sapucaí, no embalo da imaginação dos carnavalescos. Com a modernização das transmissões dos desfiles, a torre de TV próxima à Praça da Apoteose tornou-se desnecessária, além de um obstáculo para alegorias cada vez mais altas. Foi derrubada.
A evolução da qualidade do equipamento de som — que nunca foi uma unanimidade, aliás — trouxe novos desafios para os ritmistas. Mestres de bateria contam que são cada vez mais evidentes eventuais imperfeições nas apresentações.
Testemunhas do passado
Embora tenha ficado pronto no prazo estipulado, o projeto original de Niemeyer só saiu do papel em sua plenitude 28 anos depois da inauguração. Em 2012, um acordo permitiu a demolição da antiga fábrica de cerveja vizinha à passarela, para a construção de quatro novos blocos de arquibancada no setor par. Novamente, o tempo foi uma questão.
Na sexta-feira de carnaval, com as escolas de acesso já desfilando, ainda havia serviços em andamento .
— Tivemos que transferir ocupantes das frisas para o camarote do prefeito e passar a noite trabalhando — lembra o ex-presidente da Riotur Antonio Pedro Figueira de Mello.
Renato Velasco era um jovem fotógrafo quando foi escalado pelo estúdio onde trabalhava para documentar a construção do Sambódromo. A ideia era fazer um trabalho técnico, registrando os detalhes da construção para as empresas encarregadas da empreitada.
O dia a dia no canteiro de obras acabou sendo uma experiência transformadora para aquele garoto, então com apenas 19 anos. Depois de quatro meses acompanhando a rotina dos operários e testemunhando uma obra icônica para o Rio e o país, Velasco já não queria mais voltar para o estúdio. Seduzido pela adrenalina do fotojornalismo, deixou para trás o estúdio e trabalhou nos principais veículos de comunicação do país.
— A primeira coisa que vem à minha cabeça quando lembro do trabalho no Sambódromo é o calor. Era outubro, o Rio já estava na casa dos 40 graus. No canteiro de obras, um descampado com máquinas, motores ligados, cimento, parecia que era muito mais. Um calor infernal — lembra.
Acompanhar o ritmo alucinante da obra debaixo do sol cobrou seu preço. O fotógrafo emagreceu dez quilos e chegou a sofrer uma desidratação. Nada capaz de deixá-lo muito tempo longe do trabalho. Foram milhares de fotos. Com uma máquina, do estúdio, ele fazia os registros técnicos, detalhistas, exigidos pelas empreiteiras. Com outra, particular, usava filmes em preto e branco para fotografar a poesia que conseguia enxergar em meio ao caos de vergalhões, capacetes, concreto.
Boa parte do material fotografado por Velasco se perdeu em uma enchente que atingiu o estúdio para o qual trabalhava. Ficaram algumas imagens que ele fez com sua Nikon, entre elas as duas que ilustram esta página. Em ambas, os operários e a estrutura são o destaque.
— Uma coisa boa foi a relação com os operários. Tinha gente de todos os lugares do Brasil. Ouvi muitas histórias. Uma delas, particularmente, eu achei muito bacana. Um deles me contou da emoção de estar trabalhando ali naquela obra projetada pelo Niemeyer porque ele tinha parentes que haviam trabalhado na construção de Brasília. Achei muito legal, muito emocionante — conta Velasco, que, aos 59 anos, está radicado em Portugal desde 2017.
‘Lágrima de pierrô’
Uma das fotos que Renato mais gosta é a que mostra um operário com uma pequena colher de pedreiro, retocando a parte inferior de um imenso vão em forma de gota na estrutura de concreto armado. O arquiteto João Niemeyer, sobrinho de Oscar, que acompanhou de perto toda a obra, lembra que houve quem visse naquela abertura uma forma poética que seu tio teria encontrado para representar a “lágrima de um pierrô”
— Bobagem. A abertura foi um pedido dos engenheiros para aliviar o peso da estrutura. Era tudo muito rápido, o tempo era curto, mas Oscar fazia tudo sempre com muito esmero e cuidado. Ele jamais se contentaria em fazer um vão simples — recorda.
Com informações do Extra online.
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