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“Estamos caminhando em direção a um abismo em um breu total. Sabemos que estamos caminhando para o precipício, mas quando isso vai acontecer só saberemos quando cairmos.” Pesquisadora nas universidades de Oxford e Lancaster e uma das coordenadoras da Rede Amazônia Sustentável, a bióloga e ecóloga Erika Berenguer usa essa analogia quando lhe perguntam quando a floresta amazônica atingirá o “ponto de não retorno”.
Conceitualmente, isso vai acontecer quando a Amazônia deixar de funcionar como o esperado para o que ela é: uma floresta umbrófila densa – ou seja, uma floresta extremamente úmida e com farta cobertura vegetal. No jargão do meio ambiental, seria quando o bioma perder seus serviços sistêmicos. “Quando isso ocorrer, a floresta vai perder a capacidade de gerar chuva”, explica Berenguer.
A floresta amazônica deve estar no epicentro das discussões da COP-26 na terça-feira, dia 2, quando está prevista uma reunião entre governantes, empresários, investidores e líderes de organizações não-governamentais para tratar das relações entre a preservação de biomas, o uso da terra de forma sustentável e a necessidade de manter a meta de temperatura global. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, não participa da cúpula climática.
Vale lembrar do por que se fala tanto de Amazônia quando se trata de mudanças climáticas, meio ambiente e biodiversidade. A Amazônia abriga uma parcela relevante da biodiversidade já conhecida: são 22% das espécies de plantas vasculares, 14% das aves, 9% dos mamíferos, 8% das anfíbios e 18% dos peixes que habitam os trópicos. Em partes dos Andes e planícies amazônicas, um único grama de solo pode conter mais de 1.000 espécies de fungos geneticamente distintos.
Além disso, a diversidade de peixes em seus rios representa aproximadamente 13% dos peixes de água doce do mundo, 58% dos quais não são encontrados em nenhum outro lugar da Terra. Esses dados são do Painel Ciência para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês), uma iniciativa inédita convocada pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (UNSDSN).
O SPA é composto por mais de 200 cientistas e pesquisadores dos oito países amazônicos, Guiana Francesa e de outros parceiros globais. O relatório final desse esforço será apresentado na COP-26, no dia 12 de novembro.
O relatório preliminar do SPA constata ainda sobre a Amazônia: “A floresta age como um ‘ar-condicionado’ gigante, reduzindo as temperaturas da superfície da terra e gerando chuva. Exerce uma forte influência na atmosfera e nos padrões de circulação, tanto dentro como fora dos trópicos”.
De acordo com o texto, até 50% da precipitação da bacia amazônica é regionalmente reciclada, o que representa um alto fluxo de umidade dos oceanos para o interior. Além disso, a bacia fornece a maior descarga de rio na Terra: de 16 a 22% do fluxo total de rios para os oceanos.
Sim, chove muito na Amazônia porque as árvores que lá existem funcionam como eficientes bombas d’água, “puxando água do solo e transpirando na atmosfera”, explica a pesquisadora. Graças a esse mecanismo diuturno, 80% do que chove no bioma é resultado da reciclagem da água de lá mesmo.
“O ponto de não retorno seria quando a Amazônia chegar a um estágio de desmatamento, e também por conta das mudanças climáticas, que não possibilite mais manter a cobertura vegetal suficiente. Com isso, não vai mais ter a reciclagem de chuva necessária para a manutenção da floresta”, diz Berenguer. “Ela morreria por falta de chuva.”
Estudos indicam que o ser humano já destruiu cerca de 17% da Amazônia. O relatório preliminar do SPA fala que aproximadamente 17% das florestas amazônicas foram convertidas para outras utilidades, e pelo menos mais 17% foram degradados. O problema é muito mais profundo do que parece. O não retorno da Amazônia será uma catástrofe. Para o Brasil. E para o mundo.
Impactos
Começando do começo. Essa profusão de bombas d’água naturais que forma a floresta não garante só as chuvaradas diárias no bioma. Influencia em todo o regime de chuvas do Brasil — e em outros países da região. A desregulagem dessa maquininha outrora perfeita prejudica os reservatórios d’água. Consequências já são sentidas, com crises hídricas que prejudicam o abastecimento e a produção de energia hidrelétrica.
Mas não é só. Chuvas — de preferência com o volume e a constância adequadas a cada estação — são essenciais para a agricultura. Interferem diretamente no prato de cada cidadão.
“Menos árvores, menos vapor d’água na atmosfera, menos chuva. Isso tudo faz com que as temperaturas fiquem mais altas, as estações secas sejam mais prolongadas. Causa um impacto negativo para a própria floresta, que fica mais suscetível a degradação, perde o equilíbrio”, observa o engenheiro florestal Argemiro Teixeira Leite Filho, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Leite Filho recorda que desde os anos 1980 já são discutidos, no meio acadêmico, os efeitos dessa mortalidade em massa de árvores da Amazônia. E aí reside a preocupação global da história: esse fenômeno, causado pela ação humana, tem um potencial imenso de agravar as mudanças climáticas – e prejudicar o agronegócio.
Em um estudo publicado em maio deste ano, o professor Leite Filho estimou que, “em um cenário de governança fraca, a região sul da Amazônia brasileira pode perder 56% de suas florestas até 2050. A redução do desmatamento evita perdas agrícolas nessa região de até US $ 1 bilhão anualmente”.
“Com a capacidade de absorver carbono cada vez menor, o serviço que a floresta amazônica presta ao planeta vai diminuindo. E isso aumenta a crise climática em escala global”, salienta a bióloga e ecóloga Adriane Esquivel Muelbert, pesquisadora na Universidade de Birmingham.
O caminho às cegas em direção ao precipício, ao que parece, não é uma linha reta. É mais uma boa definição de ciclo vicioso. “O desmatamento ou um clima mais seco devido ao aquecimento global pode causar mortalidade das árvores, criando um clima cada vez mais seco que causa cada vez mais mortalidade das árvores, num ciclo nocivo cada vez mais seco e com menor cobertura vegetal”, explica o engenheiro agrícola Marcos Heil Costa, professor na Universidade Federal de Viçosa.
“A partir de determinado ponto, o ponto de não retorno, o clima não é chuvoso o suficiente para ser capaz de suportar uma floresta tropical, e a vegetação remanescente não consegue mais manter o clima chuvoso anterior”, completa ele.
Irreversibilidade
Diversos estudos recentes vêm indicando que partes do bioma, sobretudo nas fronteiras ao sul e ao leste da floresta, já estão no início desse processo. Dentre os cientistas, não há consenso. Mas o mais provável é que a Amazônia não entre em colapso num repente, e sim que seja um processo gradual, região a região.
Nessas áreas em que o desequilíbrio vem sendo observado, mesmo que as áreas desmatadas sejam deixadas sem interferência humana a partir de agora, a floresta por si só não conseguiria se refazer. Pela simples questão de que não há condições naturais suficientes para sustentar uma formação umbrófila densa. E esse fenômeno acaba deglutindo, pelas bordas, o que resta de Amazônia.
Os adultos de hoje cresceram com a ideia de que o problema da Amazônia já era muito sério, mas reversível. E daqui em diante? Ainda não há uma resposta.
Segundo Muelbert, por uma razão muito simples: o experimento, neste caso, é algo muito único. Só pode ser feito uma vez. Se quebrar, quebrou. Como só temos uma floresta amazônica, o estrago que o ser humano está provocando nela, apesar das projeções realizadas por cientistas, só tem as consequências confirmadas quando já está feito. E aí, pode ser que não haja volta.
“A gente tinha essa ideia de que na natureza tudo volta ao normal, mas o problema agora é que o clima mundial está mudando junto…”, comenta a pesquisadora. Mas ela tem alguma esperança. “A floresta é muito resiliente e tem uma capacidade muito grande de recuperação.”
Receita da salvação
A poucos passos do precipício, temos alternativas. Embora tudo indique que a humanidade está em direção a esse salto abissal tresloucado, há quem veja possibilidades. Enxergar o tamanho do problema é um passo importante. Inverter a rota para não cair, uma decisão inteligente e urgente.
No caso da Amazônia, os pesquisadores sabem a receita. E não se cansam de repeti-la. Parar o desmatamento é o principal. Não só não aumentar. Não só diminuir. “É inaceitável pensar em um cenário futuro otimista sem pensar em zerar o desmatamento. Não há necessidade de expandir áreas de cultivo e pecuária na Amazônia, os principais motores do desmatamento. Áreas desmatadas abandonadas podem inclusive servir para regeneração da floresta”, defende Leite Filho.
“Precisamos fazer com que regiões degradadas da floresta voltem a absorver mais carbono do que a emitir, esse seria o melhor cenário”, prossegue ele.
Outro pronto é não se esquecer que a doença que vitima a Amazônia está ligada ao contexto global de mudanças climáticas. Uma coisa influencia a outra, na verdade. Aí entra a segunda necessidade urgente: emissões líquidas zero de gases de efeito estufa.
“Infelizmente, falta vontade política para que isso seja feito. A ciência precisa ser o carro-chefe para tais implementações”, afirma Leite Filho.
Individualmente, os cidadãos também podem contribuir. Consumindo produtos de forma mais responsável, por exemplo. Buscando diminuir as próprias pegadas de carbono. E apoiando empresas e líderes que tenham posturas ambientalmente corretas.
“A primeira coisa é votar em candidatos, tanto do executivo quanto do legislativo, da esfera federal à municipal, que tenham uma agenda prevendo redução de desmatamento e de emissões de gases de efeito estufa. Uma legislação municipal que preveja redução de emissões tem efeito. Não é preciso estar na Amazônia para contribuir para evitar o ponto de não retorno”, diz Berenguer. (Da CNNBrasil)
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