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Com a entrada em vigor das alterações recentes do Código Penal, em especial com a introdução do artigo 147-A, que trata do crime de perseguição, que ficou conhecido como stalking, muitas fake news surgiram, aproveitando-se do momento em que vivemos, afirmando que referido tipo penal poderia ser utilizado para criminalizar prefeitos e governadores que decretassem isolamento e fechamento dos comércios.
O título desse artigo é provocativo e se pauta em fantasiosa alegação, que foi veiculada nas redes sociais, entre outros, como título de que “prender trabalhador é crime” ou que “decretar lockdown agora é crime”, tem por fundamento a previsão constante do referido artigo 147-A, introduzido pela Lei nº 14.132/21, em virtude do seu texto tratar de casos em que haja restrição do direito de ir e vir, nos seguintes termos“perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.
Cumpre ressaltar, no entanto, que, embora de difícil conceituação, Stalking é termo de origem inglesa, que está relacionada com “atividade de caça”, ou seja, tem o sentido mesmo de perseguir a presa, condutas que até então não tinham a devida tipificação penal, ficando adstritas ao enquadramento análogo em outro artigo da Lei de Contravenções Penais e, até mesmo, em previsões do próprio Código Penal, o que, agora está, de certo modo, devidamente individualizado, trazendo o novo crime pena de reclusão de seis meses a dois anos e multa, além do aumento para o cometimento contra criança, adolescente, idoso, mulher em razão do sexo feminino ou, ainda, quando a conduta for praticada por duas ou mais pessoas ou com emprego de arma.
Controvérsia à parte, cabe esclarecer que stalking não tem qualquer relação com o momento que vivemos da pandemia, ainda que se cogite que tenha sido elaborado com essa intenção, de gerar algum tipo de temor ou confusão na nossa já tão atormentada democracia, uma vez que se trata de crime relacionado com perseguição individual e, mais especificamente com maior intensidade, com intuito de combater crimes virtuais e contra mulheres, tendo em vista que, embora não seja exclusivamente para proteger o sexo feminino, há forte correlação entre tais práticas e as questões ligadas ao gênero, o que se dá muitas vezes em virtude de rompimento de relacionamento ou por problemas psicológicos do agente, principalmente em razão do aumento dos crimes de feminicídio na atualidade.
Para Damásio de Jesus, o crime de stalking“é uma forma de violência na qual o sujeito ativo invade a esfera de privacidade do sujeito passivo, repetindo incessantemente a mesma ação por maneiras a atos variados, empregando táticas e meios diversos: telefonemas, mensagens amorosas, telegramas, ramalhetes de flores, presentes não solicitados, permanência na saída de sua escola ou trabalho, espera da sua passagem em determinado lugar, frequência constante no mesmo local de lazer, etc.”.
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Desse modo, embora tenha o nítido condão de preservar direitos constitucionais de grande relevância, tais como a privacidade, a intimidade, a vida privada, liberdade e, em último grau, a dignidade da pessoa humana, referido crime não tem o condão e nem qualquer possibilidade de punir as condutas dos gestores públicos que estão lutando contra a pandemia do Coronavírus, mais especificamente naqueles casos em que haja a edição de decretos restritivos de circulação e funcionamento de empresas/comércios ou, ainda, em caso de lockdown, mesmo que tais medidas firam, por certo, a liberdade de locomoção e o livre mercado.
Tal fato se dá, em primeiro, por se tratar de medidas excepcionais, mas necessárias para o enfrentamento à pandemia, vez que não se verificou outra medida capaz de reduzir o contágio e minimizar os impactos na saúde da coletividade, o que se respalda na própria Constituição, numa ponderação de interesses, no pilar da dignidade da pessoa humana, a vida, que se sobrepõe a qualquer lei infraconstitucional, e, em segundo, porque o próprio crime de stalking, em seu texto, deixa claro não se tratar de criminalização de conduta genérica, que possa ter por vítima a coletividade, mas, sim, sujeito individualizado, especialmente quando se utiliza o termo “alguém”, vez que referida previsão deixa claro que a ameaça à integridade física ou psicológica que restrinja a capacidade de locomoção ou que de qualquer forma invada ou perturbe a esfera de liberdade ou privacidade deve ser realizada de modo reiterado e mediante perseguição à alguém, portanto, sujeito determinado.
Assim, por todos os ângulos que se verifica, em especial pelos motivos que fizeram nascer o referido artigo 147-A, do Código Penal (crime de perseguição), bem como com base numa análise do bem jurídico tutelado, do sujeito ativo e passivo e do seu objeto, assim como numa análise principiológica constitucional, dentro de uma ponderação de interesses, com respaldo no princípio da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, não comporta aqui a criminalização dos gestores públicos que optaram, num cenário de pandemia, pela restrição temporária da liberdade e da economia dos cidadãos, com vias justamente a resguardar-lhes a vida e a saúde, tendo em vista que os decretos restritivos tem por escopo uma medida genérica, amparados no interesse social primário, estampado no ápice da Constituição Federal.
Foto: Buda Mendes/Getty Images
Amilton Augusto - Advogado especialista em Direito Eleitoral e Administrativo.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Tribuna da Imprensa Digital e é de total responsabilidade de seus idealizadores.
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