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Há três anos e meio, as manifestações das Mulheres Unidas contra Bolsonaro gritaram #EleNão em todos os estados do Brasil e em 15 cidades no exterior, em 29 de setembro de 2018. Apesar de ter sido uma das maiores e mais abrangentes manifestações populares da década, a poucos dias do primeiro turno da eleição presidencial, nem sempre aquele protesto é visto por sua grandeza e seu potencial de barrar a vitória de Jair Bolsonaro. Isso porque, para algumas avaliações, a máquina de notícias falsas da campanha do capitão teria aplicado um “contragolpe” na repercussão.
E, assim, impulsionado o eleitorado conservador a dar-lhe a vitória no segundo turno. Ainda hoje a polêmica está presente, o que minimiza a vibração daqueles atos que levaram até meio milhão de pessoas às ruas. Mas equivocadamente, como observa a ativista Sônia Coelho, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e da Marcha Mundial das Mulheres (MMM).
O #EleNão eclodiu em meio ao crescimento de Bolsonaro nas pesquisas. O Datafolha, por exemplo, registrou nos dias seguintes uma alta do atual presidente inclusive no eleitorado feminino. O que levou à leitura – à direita, mas também em setores de esquerda – de que a mobilização das mulheres teria surtido efeito contrário. Principalmente por conta da exposição distorcida de pautas morais, como legalização do aborto e descriminalização das drogas.
A feminista, no entanto, atribui esse crescimento de Bolsonaro às fake news que circularam na ocasião e às alianças firmadas com setores religiosos. Sônia critica o olhar reducionista ao processo de lutas feministas como uma “forma de secundarizar questões que se referem à vida das mulheres”. O mesmo processo que identifica no silenciamento de pautas de direitos sexuais e reprodutivos consideradas “sensíveis” diante de uma sociedade conservadora, como a brasileira. “Na nossa avaliação, se não tivéssemos gerado aquele processo massivo contra Bolsonaro na sociedade, ele poderia ter ganhado no primeiro turno”, avalia.
Nesta entrevista à RBA, Sônia Coelho reflete o que ocorreu naquele período, faz autocrítica ao movimento de mulheres organizadas, entre elas, a de que faltou tornar a luta permanente no período, para também analisar as perspectivas de luta das mulheres que abrem esse novo ano de mobilizações populares com protestos em dezenas de cidades neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher. A ativista lembra que, desde 2019, já no primeiro ano do governo Bolsonaro, as mulheres foram o primeiro segmento a levantar a bandeira pela sua deposição. E o #EleNão virou um slogan aglutinador de outras maiorias minorizadas, como o movimento negro e LGBTQIA+. “As feministas já mostravam que era impossível conviver com um processo como esse que prescinde e ataca a democracia o tempo todo.”
De acordo com ela, as fake news ainda são armas perigosas. Mas o impacto da gestão na vida das mulheres deve pesar mais na realidade. “As pesquisas à época identificaram que se dependesse de determinados setores das mulheres, ele não teria sido eleito. E essa rejeição continua muito forte”. Confira os principais trechos da entrevista
O #EleNão nasceu dentro de um grupo no Facebook chamado de “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”. O que aconteceu ali que despertou para esse protesto que lembrou as jornadas de junho de 2013 em termos de grandiosidade?
Você há de lembrar que Bolsonaro já era uma pessoa malquista entre as mulheres desde o período em que ele falou do estupro em relação a Maria do Rosário. Naquela época fizemos algumas manifestações contra Bolsonaro e essa relação do estupro, e ele sempre foi conhecido no parlamento como uma pessoa extremamente conservadora. Nesse período que ele se torna um candidato, e um candidato com condições inclusive de se eleger, as mulheres já estavam envolvidas no processo de eleição. Os movimentos estavam mobilizados e essas companheiras fizeram esse chamado “Mulheres Contra Bolsonaro“, o #EleNão.
Nós, como movimento organizado, assumimos com elas a ideia de fazer atos nas cidades e estados. E foi uma coisa interessante porque virou algo muito grande. E as coisas não acontecem ou explodem do nada. Se aconteceu esse processo massivo de luta contra Bolsonaro é porque tinha um processo em curso de luta que nós tínhamos feito também. Foi um processo que veio das lutas contra o golpe (que depôs a presidenta Dilma Rousseff), da Marcha das Margaridas colocando Fora Cunha e depois Fora Temer. Essa turma toda, com Bolsonaro, se articulou para colocar aqueles projetos do dia do nascituro (estatuto), e houve atos grandes das mulheres e de muitas jovens na rua pela legalização do aborto e contra o projeto bolsa-estupro. Então havia um processo em curso muito grande de mobilização.
E quando o Bolsonaro se coloca como candidato, nós, do movimento de mulheres, tínhamos a percepção de que ele era um candidato extremamente conservador, da extrema direita, e com todo aquele caráter fascista que ele já vinha colocando. Porque todas as propostas dele, o que ele falava em relação às mulheres, que elas tinham que ganhar menos, durante sua campanha ele foi batendo no movimento feminista, em demandas históricas das mulheres, então quando surge essa proposta do #EleNão, esse processo todo se juntou e ganhou força. Na nossa avaliação, se não tivéssemos gerado aquele processo massivo contra Bolsonaro na sociedade, ele poderia ter ganhado no primeiro turno.
Porém, dois dias depois do primeiro ato, em 29 de setembro, as pesquisas eleitorais começaram a mostrar uma vantagem para o Bolsonaro, com avanço de 6 pontos percentuais inclusive sobre o eleitorado feminino. A que o movimento de mulheres atribui essa contra-mobilização que ficou conhecida como “Ele sim”?
Muitos falam “ah não, mas ele cresceu mais depois do #EleNão”. Não é que ele cresceu mais depois do #EleNão. Temos que lembrar que no dia do #EleNão, o Bolsonaro se juntou com pastores, foi um dia que ele fez acordos com as igrejas evangélicas e ele foi avançando nessa articulação com esse projeto absolutamente fascista e conservador. E claro que ele cresceu com essas articulações e acordos.
O que a gente avalia é exatamente isso. Imagina, ele fazendo todos esses acordos com esses setores e sem nenhum movimento que colocasse (oposição), apenas fazendo campanhas, quieto, como todos estavam fazendo, sem ir para às ruas e expressar nenhuma indignação (à candidatura de Bolsonaro). Ele poderia facilmente ter ganhado no primeiro e com muito mais legitimidade do que inclusive ele ganhou.
Mas se você olhar no dia do #EleNão, pra começar a imprensa não deu dimensão dos atos que ocorreram. Em São Paulo e em várias capitais nenhum movimento conseguiu fazer um ato maior do que foi o #EleNão. Mas essa dimensão foi meio que negada, escondida. E eles também utilizaram de uma ferramenta que ajudou a elegê-los, que foram as fake news. Até nos nossos grupos apareciam fake news. Porque eles fizeram várias fake news sobre as mulheres, mostrando coisas que não tinham nada a ver com aquele momento. Eles se organizaram muito para fazer uma contraofensiva àquele processo.
Eu me lembro que no bloco da Marcha Mundial das Mulheres, aqui em São Paulo, nós organizamos segurança porque sabíamos desses processos, sabíamos que eles eram extremamente violentos. De repente, quem apareceu no meio do bloco da marcha, foi o Mamãe Falei (Arthur do Val). Ele se aproximou de nós e começou a mostrar uma foto da Marcha Mundial (das Mulheres) em protesto pela legalização do aborto, pregado com a cara do padre Júlio Lancellotti. E ele nos perguntou se o padre Júlio Lancellotti estava no meio de nós. Você em plena manifestação daquele tamanho e esse cara lá. Depois que começou a fazer mais perguntas nos demos conta de que era esse cara. Começamos a gritar “tem fascista aqui, tem fascista aqui”. Os meninos que estavam na segurança tiraram ele do nosso bloco.
Mas você vê, eles foram organizados, eles estavam filmando tudo, foram para o meio da gente. Então eles sabiam da dimensão da coisa, não receberam imagens da televisão. Eles puderam ver a dimensão do que foi o movimento isso deve ter assustado. Pois eles já estavam preparados com muitas fake news, porque já durante a manifestação eles estavam disseminando fake news.
A cobertura da mídia independente foi capaz de contrapor esse processo de invisibilidade?
Mesmo a mídia independente não foi capaz de cobrir e mostrar toda a dimensão do que o #EleNão foi. Não sei se ela não acreditou que seria algo tão grande e tão importante naquele momento, mas acho que também a nossa mídia não conseguiu dar a dimensão do que foi o processo do #EleNão.
Como a gente conversa com as mulheres do campo, em muito lugares, eu me lembro que na Marcha das Margaridas, a última foi em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, onde lançamos o ‘Fora Bolsonaro’, mesmo as mulheres do campo falaram muito das ações e atividades, de como elas organizaram o #EleNão. Então foi um processo muito para além dos grandes atos das capitais. Teve muita coisa, em todos os lugares, mas que a gente não conseguiu ter a dimensão de tudo.
Mas hoje, passados quatro anos, o movimento de mulheres faz alguma autocrítica ou considera que a mobilização ficou refém apenas das fake news e das articulações bolsonaristas?
Nós avaliamos que foi um processo naquele momento importante, fundamental, mas também faltou ter um processo contínuo. Tanto que no segundo turno, quando retornamos às ruas, já não foi tão grande quanto foi o primeiro turno.
Ainda que ela não tenha no segundo turno conseguido uma mobilização maior, o Dia das Mulheres, em 2019, saiu com o lema “Mulheres contra Bolsonaro! Vivas por Marielle! Em defesa da Previdência, democracia e direitos”. O #EleNão se desdobrou em um movimento de oposição ao governo Bolsonaro?
Se olharmos desde o primeiro 8 de março, logo após ele ganhar, em 2019, a gente definiu que o nosso eixo era “Mulheres contra Bolsonaro, contra a reforma da previdência e outras reformas” que ele estava colocando. Já entrava a questão das mulheres contra Bolsonaro. E observando em 2020, já no 8 de março nós discutimos que teríamos que colocar no Brasil inteiro o “Fora Bolsonaro”. Em 2020, inclusive, fizemos uma articulação nacional para a gente conseguir que o nosso eixo, “Fora Bolsonaro”, ou “Mulheres Contra Bolsonaro”, que ele repercutisse nacionalmente. E conseguimos fazer isso.
Me lembro que em 2020, a gente fez cerca de 100 atos pelo Brasil no 8 de março em que conseguimos colocar no centro da discussão desta data a questão do Bolsonaro. Tanto que o Movimento de Mulheres foi o primeiro que tensionou na pauta pelo “Fora Bolsonaro”. Tanto que a Campanha Nacional pelo Fora Bolsonaro ela vai se organizando durante a pandemia, mas no início tinha muita a discussão, os movimentos sociais foram aderindo aos poucos a questão do “Fora Bolsonaro”. Nós já vínhamos trabalhando, as feministas já mostravam que era impossível conviver com um processo como esse que prescinde e ataca a democracia o tempo todo e que para nós, mulheres, para o feminismo em uma sociedade de democracia burguesa em que as mulheres já são muito afetadas e vivem muito a desigualdade, a gente sabia que ia piorar a vida das mulheres e da população negra.
Essa percepção que tivemos no #EleNão – de dizer que esse governo é racista, fascista e conseguiu fazer essa articulação do neoliberalismo com o conservadorismo –, nós já levantávamos.
Logo depois do #EleNão, do segundo turno, alguns setores da esquerda reconheceram a importância do #EleNão. Pois avaliaram junto conosco que ele foi imprescindível naquele momento. Mas alguns setores avaliaram negativamente, da própria esquerda.
Para o movimento, há algo por trás desse diagnóstico que insiste em colar ao #EleNão a vitória de Bolsonaro?
Temos sempre que pensar que o movimento feminista ele é um movimento que ataca diretamente as raízes do capitalismo, mas também do patriarcado. E quando você vai para a rua com #EleNão na dimensão que teve, como um movimento de massa, você incide na correlação de forças na sociedade. E há movimentos dirigidos por homens que, mesmo de esquerda, se sentem muitas vezes ameaçados pelo feminismo. Então claro que eles sempre tentam secundarizar qualquer reivindicação das mulheres que coloquem diretamente a questão da igualdade, das mulheres, como algo a ser resolvido lá na frente.
E esse projeto que articula o neoliberalismo e o conservadorismo, eles (da direita) colocam muito no centro essa questão do gênero. Não é à toa que eles trazem essa coisa de ‘ideologia de gênero’, de reafirmar essa família monogâmica, ’tradicional’. Eles trazem todos esses elementos porque sabem que isso é central em um projeto ultraneoliberal, conservador porque querem colocar as mulheres em outro patamar. E isso para o sistema capitalista, patriarcal e racista é parte de toda engrenagem. Só que há companheiros da esquerda que não veem assim. Eles acham que tem coisas mais fundamentais para a luta de classe e há pautas secundárias.
Mas o feminismo é fundamental na luta de classes. Um dos exemplos mais genéricos do 8 de março, falar em salário e trabalho igual para as mulheres é falar de metade da classe trabalhadora.
Quando você luta pela legalização do aborto você está falando que as mulheres da classe trabalhadora morrem por aborto (clandestino), sofrem as sequelas (da ilegalidade). Então todas essas questões que estamos falando não são de uma outra classe, estamos falando da classe trabalhadora. Todas essas questões estão interligadas quando falamos de trabalho.
Na pandemia, as mulheres ficaram mais sobrecarregadas, são linha de frente porque são maioria no trabalho de cuidado, de serviços de saúde, na assistência social, e não é à toa. Temos uma divisão sexual do trabalho que coloca as mulheres em determinados setores mais desqualificados em que toda a responsabilidade do trabalho doméstico e de cuidado (é jogada) nas costas das mulheres. Sabemos que isso é uma engrenagem fundamental no sistema capitalista e são coisas que o próprio governo coloca. Mas houve até aquela discussão no início ‘ah mas isso é cortina de fumaça, o que é realmente importante não está acontecendo’.
Isso é uma forma de secundarizar questões que se referem à vida das mulheres. E por isso também passa a polêmica em torno do #EleNão, porque a gente tinha que brigar com a extrema direita, manter o processo de mobilização, enquanto tinham setores que diziam que não tínhamos que continuar, que estava errado. Eu me lembro que estava em uma reunião e que dei batidas na mesa, ‘o que é isso aqui?’.
Isso explica, por exemplo, a divisão quanto à discussão do aborto? Porque há setores ditos progressistas que vão dizer a exposição de determinadas pautas é perigosa por causa do conservadorismo brasileiro.
É sempre falado isso, “aqui é melhor não tocar”. Só que a direita, a extrema direita e os setores conservadores, eles falam disso o tempo todo, eles tentam destruir direitos ligados a essas questões e não têm nenhuma vergonha. Um governo todo se mobilizou para impedir que uma menina de 10 anos fizesse um aborto legal, exercesse o seu direito. Ele queria obrigar uma menina de 10 anos a assumir a gravidez de um estuprador. A direita fala o tempo todo desses assuntos, coloca em pauta. Houve um aumento de mais de 20% de projetos que retrocedem na área dos direitos sexuais e reprodutivos, a direita não tem nenhum problema de falar desses assuntos.
É sempre a esquerda que diz ‘não podemos falar disso ou daquilo’.
Bolsonaro, contudo, continua com alta rejeição entre as mulheres. Considerando que este é um ano eleitoral, como o movimento organizado pretende canalizar essa oposição feminina? ela pode ser decisiva para impedir a reeleição do atual presidente?
Acredito que terá peso sim das mulheres, das mulheres jovens. Nós costumamos fazer uma campanha à parte e, na campanha eleitoral de 2018, produzimos nosso próprio material e íamos para bairros, regiões, levantando as bandeiras. E as meninas e mulheres recebiam isso muito bem. Mas já percebemos na campanha que os meninos eram muito favoráveis ao Bolsonaro por essa coisa da questão do armamento que, para as mulheres, era um problema. Porque elas sabem que se não são elas que serão afetadas pode ser o filho que vai ser morto, o marido ou companheiro.
Então, para as mulheres não é nenhuma vantagem ter uma arma. Nenhuma mulher falava “ai, que bom, mas ele vai permitir que tenhamos uma arma”, mas muitos meninos e homens falavam. Esse tipo de coisa, despolitizada, aparecia.
E as pesquisas à época identificaram que se dependesse das mulheres, ele não teria sido eleito. E essa rejeição continua muito forte.
Mas e quanto às ferramentas que impulsionaram Bolsonaro? O movimento não teme que as distorções em torno do #EleNão sejam ainda maiores do que os impactos da gestão Bolsonaro na vida das mulheres?
Tem uma realidade infelizmente muito pesada e triste, de aumento da violência (contra a mulher). Podem falar da pandemia, mas não é só ela. Era possível organizar serviços preventivos para garantir atendimento às mulheres. Mas o que vimos foi o contrário, houve todo um desmonte de políticas públicas, esse desmonte que ele fez do Bolsa Família, em que as mulheres principalmente eram inscritas. Muitas foram descadastradas dos programas de moradia, mesmo de programas no campo, muitas eram as maiores beneficiárias. Tudo isso afetou profundamente as mulheres.
E a recessão geral mesmo, de maior desemprego. Aquela fila do osso, as pessoas buscando alimentos no caminhão de lixo, eram mulheres ali, e mulheres negras. Quando bate a fome em casa são elas que têm que dar respostas porque a panela está vazia. São elas que respondem às crianças porque não tem comida. E são elas que vão atrás. Fica uma responsabilidade muito grande sobre as mulheres essa coisa de ter o alimento, a questão da carestia, elas ficam para baixo e para cima, têm que achar a coisa mais barata, ver que tipo de alimento elas têm que pensar em fazer agora. Se não tem gás, é ela (a mulher) que vai cozinhar no fogão de lenha ou na latinha de álcool e se queimar. Essas coisas todas recaem sempre nas costas das mulheres.
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