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Por Jamil Chade* - Em 1921, um oficial do império turco-otomano foi assassinado nas ruas de Berlim. O autor do crime era um jovem armênio que, durante seu julgamento numa corte local, afirmou que estava vingando a morte de sua mãe num dos maiores massacres do século XX.
Cem anos depois, um novo extermínio abalou a sociedade. Desta vez, não havia trincheira e nem controle de territórios. Era uma guerra sem bombas. Mas com milhões de mortos. A pandemia da covid-19 colocou uma parcela do mundo de joelhos e mostrou que mesmo governos ricos não estavam preparados.
Mas essa não é a história completa da pandemia. O vírus mortal desembarcou num mundo no qual o negacionismo, o populismo, a desinformação deliberada, corrupção e busca pelo poder falaram mais alto que a defesa da vida em várias partes do planeta.
O relatório final da CPI da Pandemia —apresentado nesta quarta-feira com suas mais de 1.000 páginas—, portanto, é um dos informes mais importantes já produzidos desde o início da pandemia no mundo. Usando a lei, os mecanismos do Estado de direito e transparência, o informe detalha como mais de 600.000 pessoas morreram no Brasil. Sim, havia um vírus. Mas também um aliado: o Governo brasileiro.
O relatório deixa claro que as urnas não são respostas suficientes diante das mortes e que uma responsabilização precisa ser estabelecida.
Imediatamente após sua publicação, o documento ganhou as capas dos principais jornais mundiais. Mas a atenção dada ao relatório não ocorre por conta da importância do Brasil no cenário internacional. O motivo é muito maior: o trabalho transforma o que todos nós vimos e sentimos em lei, em provas, em apurações e testemunhas.
Em diferentes países, procuradores abriram investigações sobre responsáveis políticos. Na França, por exemplo, a chefe da pasta de Saúde passou a ser investigada. Na Organização Mundial da Saúde (OMS), um trabalho minucioso tentou entender o que ocorreu, quais foram as falhas da entidade e dos governos.
Mas nenhum desses exercícios —por constrangimentos diplomáticos ou considerações políticas— conseguiu realizar um mergulho tão aprofundado quanto o relatório da CPI.
Pela primeira vez, o negacionismo foi não apenas identificado. Mas também foi sistematizado e revelado em cada um de seus detalhes. Se a apuração dos senadores se refere ao Governo brasileiro, dezenas de especialistas começam a analisar o documento para tentar entender como práticas semelhantes por governos estrangeiros poderiam se encaixar no mesmo padrão.
Outro aspecto fundamental que chama a atenção internacional foi a capacidade do informe em destrinchar como governos usaram a pandemia para defender suas ideologias.
Por poder ou com cálculos eleitoreiros, politizou-se a máscara, o vírus, a vacina e até o abraço.
Mas o documento também trouxe indícios claros de que, na base dessa resposta, estão suspeitas de corrupção. Desde os primeiros dias da crise sanitária, entidades como a OCDE alertavam como a pandemia era “o paraíso” dos corruptos, já que abriam-se brechas perigosas diante da pressão por compras imediatas de materiais, regras de licitação que eram suspensas, a pressão popular por respostas e um mercado desabastecido.
O documento também foi recebido como uma contribuição fundamental para reforçar as acusações internacionais contra Bolsonaro, mesmo sem qualquer referência ao crime de genocídio. No Tribunal Penal Internacional, onde existem seis queixas contra o presidente brasileiro, funcionários acompanham com atenção o que ocorre no Brasil e as constatações da CPI.
Ainda em 2020, um relator da ONU deixou o Governo brasileiro irritado ao propor, oficialmente, que um inquérito internacional fosse estabelecido sobre a resposta do país à pandemia. Hoje, o documento da CPI é interpretado como um passo nesse sentido.
Fica também claro que, diante da tragédia da morte, a sociedade não irá tolerar a espera de 20 ou 30 anos para que uma Comissão da Verdade seja criada. A justiça que tarda não pode se gabar de não ter falhado.
Mesmo com suas limitações, a CPI esboça uma primeira página fundamental na resposta à pandemia no mundo. Não há o uso de armas como vingança, mas a lei, o único instrumento que uma democracia pode recorrer. E, por isso, o documento tem um papel histórico na trajetória global do vírus.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance 'O Caminho de Abraão' (Planeta) e outros cinco livros.
Este texto foi publicado originalmente no site do El País.
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