Retrocesso: 'Grande drama do brasileiro hoje em dia é comer', disse Gilberto Braga em 1994

Retrocesso: 'Grande drama do brasileiro hoje em dia é comer', disse Gilberto Braga em 1994

Uma das críticas aos governantes de um modo geral é que eles não têm hábito de dar continuidade ao que deu certo nos governos anteriores. Outro fenômeno recente, e inusitado (para dizer o mínimo), é a imprensa tentar apagar a história através da omissão da ação de governos que deixaram um legado positivo para sociedade.

No último domingo a Folha de S.Paulo divulgou um estudo realizado pelo Insper, onde o instituto constatou o óbvio: o período em que a desigualdade teve maior redução foi de 2002 e 2015, durante os governos Lula e Dilma, mas curiosamente, o jornal omite essa informação e não diz que foram as políticas integradas de inclusão social desenvolvidas pelos presidentes que aumentaram o salário mínimo acima da inflação e reduziu o desemprego ao menor nível da história.

Para relembrar como era o país antes desse período nem era necessário ler a entrevista do  genial autor Gilberto Braga porque hoje o cenário é bem parecido: fome, miséria e desemprego.

Leia abaixo entrevista concedida a Haroldo Ceravolo Sereza, publicada originalmente no jornal Folha de S.Paulo em 4 de julho de 1994.

Braga discute patriotismo em ano de eleição
Gilberto Braga está prometendo mais uma das suas. A nova novela da oito, Pátria Minha, de sua autoria, estreia em 18 de julho, um dia depois do final da Copa do Mundo.

Os personagens da novela vivem o drama de precisarem deixar o Brasil que amam para poderem levar uma vida digna.

O tema, dessa vez, gira em torno do patriotismo e do nacionalismo. Num ano com Copa do Mundo e eleições presidenciais.

Braga parece ter essa capacidade de captar e passar para suas novelas o clima que o país está vivendo.

Às vésperas da anistia, escreveu Dancin' Days, fazendo uma apologia da discoteca em clima de liberação. Em Vale Tudo, assumiu uma indignação contra a corrupção no país. Em Anos Dourados, trouxe de volta o saudosismo do brasileiro, e em Anos Rebeldes, a revolta. Em entrevista por escrito (perguntas e respostas foram enviadas via fax), o autor de Escrava Isaura – que a Globo exportou para mais de 40 países – fala sobre o seu novo trabalho.

Pátria Minha é uma retomada do slogan "Brasil, ame-o ou deixe-o?" Gilberto Braga: Por que lembrar este slogan? Isola! É uma história de amor à pátria. Sobre o período militar já fizemos Anos Rebeldes.

Sua novela é a primeira a enfocar o problema de sair ou não do país. É esse o grande drama do brasileiro hoje em dia? O grande drama do brasileiro hoje em dia, que eu saiba, é comer. Eu, pessoalmente, um escritor privilegiado, já tive a chance de sair do Brasil para trabalhar lá fora. Escolhi ficar. A história tem um pouco disso.

Você se considera um cronista da realidade brasileira? Eu não me considero nada. Me considero um escritor de novelas, um batalhador. Cronista disso ou daquilo os outros é que devem me considerar ou não.

Como surgiu Pátria Minha? Eu estava fazendo história com os parceiros, em dezembro, bem no iniciozinho. Essa fase é um pouco feito análise de grupo. Comecei a falar que estava sentindo o Brasil de forma diferente, comparado à gestação de Vale Tudo. Eu estava mais otimista. Leonor (Bassères, uma das autoras da novela), minha parceira há mais de dez anos, achou que sentia a mesma coisa. Lembrei do poema do Vinicius de Moraes (Pátria Minha), que eu tinha estudado no colégio. Peguei o livro na estante, li em voz alta, e todos acharam que a temática da novela estava ali, o amor por esta nossa pátria, "tão pobrinha".

Vilões marcantes
Como em todas as outras novelas de Gilberto Braga, Pátria Minha também terá vilões que devem fazer história.

Braga, que criou Yolanda Pratini (Joana Fomm) em Dancin'Days e Odete Roitman (Beatriz Segall) em Vale Tudo, afirma que o empresário Raul Pelegrini (Tarcísio Meira) e a colunável Loreta Vilela (Marieta Severo) devem viver os grandes vilões.

Na entrevista, Braga diz não acreditar que sua novela possa influenciar o resultado das eleições. "Não sei como uma novela pode influir", diz.

Quem deve ser o grande vilão dessa história: Lídia (Vera Fischer) ou Raul? Acho que mais Raul e Loreta. A Lídia é uma vilã que vai ficar menos vilã no decorrer da história, vai dar uma virada. Os outros devem continuar fazendo sacanagem até o fim.

As duas personagens mais contraditórias de Pátria Minha, Gustavo (Kadu Moliterno) e Ester (Patrícia Pillar), morrem no mesmo acidente, já no capítulo 18. Isso é uma exigência do gênero novela? Não é exigência nenhuma. Foi uma forma de armar a trama. E o Gustavo não é uma personagem propriamente contraditória. Morrem, na mesma ação, um mau e uma boa. É do folhetim.

Qual é a locação das cenas de favela? É uma cidade cenográfica feita pelo Mário Monteiro. Eu vi as primeiras cenas gravadas lá e fiquei impressionado. Nós tínhamos muito medo de ficar folclórico, e me pareceu bastante real, dentro da ficção.

Sua novela toca forte na questão do nacionalismo - que tem dado sinais de "vitalidade", como na comoção que envolveu a morte de Ayrton Senna. A estreia de Pátria Minha está marcada para um dia depois da final da Copa do Mundo. Que clima você espera encontrar? Não sei. A emoção com a morte do Senna foi bem posterior à sinopse. Valeu para confirmar que podíamos estar certo, só.

Sua novela não corre o risco de virar uma grande patriotada? Espero muito que não, a ideia não é essa. É amor a uma pátria "pobrinha, sem sapatos".

Vale Tudo foi acusada nos meios acadêmicos de ajudar a construir um cenário político, junto com O Salvador da Pátria e Que Rei Sou Eu, para eleger Fernando Collor. O que você acha disso? Acho essa pergunta um insulto. Me desculpe, mas vou pular.

Você acha que uma novela pode ser usada como um instrumento político? Suponho que sim. Mas não é o caso das que eu escrevo nem das que vejo.

Pátria Minha irá ao ar durante toda a campanha à Presidência da República. Ela poderia influir no resultado dessa eleição? A história começa em julho de 1993, só vamos passar para 94 depois das eleições. De qualquer forma, o discurso dos candidatos é sempre tão parecido, ninguém faz campanha dizendo "quando eu for eleito eu vou roubar muito". Não sei como uma novela poderia influir no resultado de uma eleição presidencial.

A PÁTRIA SEGUNDO BRAGA
1978/79 -
Em Dancin' Days vive-se a alegria e a liberação das discotecas. Sete meses depois do fim da novela com Sônia Braga e Glória Pires, o então presidente Figueiredo sanciona a lei de anistia aos crimes políticos.

1988/89 - Vale Tudo traz toda a indignação nacional contra os políticos e a corrupção. No final de 89, Fernando Collor de Mello se elege presidente criticando a classe política e prometendo acabar com a corrupção.

1991 - Enquanto Collor exibia sua presunção se exercitando nos finais de semana, Antônio Fagundes vivia o arrogante cirurgião Felipe Barreto, em O Dono do Mundo.

1992 - A minissérie de Gilberto sobre os jovens revolucionários dos anos 60, Anos Rebeldes, acaba um dia depois da primeira grande passeata dos estudantes "caras pintadas" contra Fernando Collor.

Por Jornal da República em 27/10/2021
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