Sentimento de Luto, pelas 595 mil vidas de brasileiros que se foram com a pandemia

Sentimento de Luto, pelas 595 mil vidas de brasileiros que se foram com a pandemia

“O luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc...”, assim escreve Freud em “Luto e melancolia”. Assim o editorial da Tribuna da Imprensa enlutado pelas 595 mil vidas de brasileiros que se foram com a pandemia, se expressa na voz e nos sentimentos dos brasileiros e dos nossos leitores.

“Eu já entendi que minha mãe vai morrer, mas não quero que seja por essa doença. Não quero que seja enterrada em um saco de lixo”.

“Foi muito estranho. Meu pai sempre falava “quando eu morrer, vai ser um velório lotado” porque ele tinha muitos amigos, conhecia muita gente. Mas infelizmente não foi como ele pensou”.

Os familiares enlutados trazem, quase invariavelmente, com muito pesar, o fato de não terem podido realizar os rituais e cerimônias fúnebres que faziam parte de seus hábitos sociais. Isso aparece em suas falas, associada a uma sensação ou sentimento de irrealidade. Na impossibilidade de ver e tocar o corpo, essa sensação se amplia.

Outros sentimentos relatados em associação às restrições de rituais e cerimônias fúnebres giram em torno de ideias de “incompletude”, de “tarefa inacabada” ou mesmo de “missão não cumprida”, que se referem tanto às expectativas do próprio enlutado quanto aos desejos expressos em vida pelo familiar falecido, acerca das homenagens a serem realizadas.

“Ainda é cedo para avaliarmos os efeitos emocionais, no longo prazo, das alterações de rituais fúnebres durante a pandemia, mas já é bem conhecido que a ausência de tais rituais dificulta a elaboração do luto”, diz o psiquiatra Roosevelt Casorla.

Contaminação e culpa

A questão da culpa pela contaminação tem sido frequente entre os enlutados e uma fonte adicional de sofrimento, raiva e revolta. Segundo o estudo, isso tem se mostrado de forma particularmente intensa em duas circunstâncias: quando houve contágio entre familiares e havia discordâncias prévias entre os diferentes membros da família quanto ao seguimento de normas de distanciamento social e quando a contaminação ocorreu no próprio ambiente hospitalar.

A família fica toda pensando: quem passou pra quem?

“Depois que ele morreu as pessoas culparam o meu irmão (falecido por Covid) por ele ter vindo visitar... Dizem que ele quem passou Covid pra todo mundo da família...”

Em meio à pandemia de Covid-19, escrevem os pesquisadores da Unicamp, muitas famílias têm passado pela experiência de adoecimento, internação hospitalar e, por vezes, falecimento, de vários de seus membros em um curto espaço de tempo.

A pandemia de Covid-19 trouxe mudanças drásticas nas circunstâncias que cercam a morte e o luto, deixando, só no Brasil, centenas de milhares de pessoas em condições adversas para a elaboração da perda de seus entes queridos e em risco de desenvolverem formas mais persistentes de sofrimento mental.

Empatia e tecnologia

Neste cenário, aqueles que estão internados em UTI, alguns tiveram condições de se comunicar e manter contato com seus familiares outros não.

Sobre as videochamadas, alguns dos familiares relataram:

“Aquele dia eu gostei que consegui ver ele… se não fosse assim não ia ver...”

“Eu vi e fiquei um pouco mais conformada de poder vê-lo no hospital… Tudo o que eu queria era ter estado ao lado dela. Mas se não fosse a videochamada, não teria mais visto minha mãe viva. Não tem comparação com quando se está próximo, mas para mim foi melhor que nada.”

“Vi no vídeo. Deu uma vontade de atravessar a câmera e abraçar ele! Só de ver já aquece o nosso coração.”

De acordo com profissionais da Saúde da Unicamp, formulações mais recentes acerca do processo de elaboração do luto tendem a enfatizar menos o rompimento de vínculos e o desapegar-se da pessoa falecida, e mais a constituição de novas e significativas formas de relacionamento, que continuam a evoluir e mudar. Dois processos complementares estão envolvidos no restabelecimento da relação, em um outro nível, com a pessoa falecida: a incorporação/identificação e a representação.

Pela identificação, a pessoa amada que morreu torna-se uma presença interna confortante, que não mais entra em conflito com a realidade externa e não mais precisa ser buscada no exterior.

Pela representação, a perda é plenamente reconhecida e ao mesmo tempo se estabelece uma conexão simbólica com o falecido. A representação se dá pela recordação, pelas várias formas de representação simbólica oferecidas pela cultura, e pela combinação de recordação e representação simbólica que compõe a construção de narrativa da relação com a pessoa amada falecida e a atribuição de significado/sentido à perda.

“No enterro meu esposo pegou uma foto, imprimiu e colocou no caixão. Foi importante, a gente conseguiu sentir mais a minha mãe... Conseguimos nos despedir dela de uma maneira mais decente...”

Por Jornal da República em 28/09/2021
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